Opinião
Sair do bairro
Entendo que uma obra literária, depois que é escrutinada pelos putativos leitores, fica à mercê da subjetividade interpretativa de cada um deles
Fernando Ribeiro desde há trinta anos que nos oferece a sua poesia envolta na voz mistério-intenso dos Moonspell, há vinte que nos convida a refletir sobre a fímbria de nós na espuma dos seus versos intimistas. Neste ano de todas as coisas confronta-nos com um romance: Bairro sem Saída, com a chancela da Penguim Random House.
Assumo, desde já, que não sou um literato e muito menos capaz da análise crítica da obra de outrem. Serei, tão-somente, um leitor comum.
Ávido, talvez, que nas palavras-pensadas dos outros busco o entendimento, que a mais das vezes me falta, das razões e motivos que nos explicam como humanos e gregários.
Entendo que uma obra literária, depois que é escrutinada pelos putativos leitores, fica à mercê da subjetividade interpretativa de cada um deles, pelo que é este o caso assumido pelo atrevimento de falar de um romance que não alcanço por inteiro.
Se a letra das composições dos Moonspell me remetem para um imaginário onírico, se a poesia do Fernando me confronta com a pulsional condição de humano, Bairro sem Saída obriga-me a refletir sobre as razões viscerais da justiça que cada um reclama para si: “No Bairro, a justiça servia-se em pequenas compensações. Era a luta de classes feita entre os pobres. A consolação que preciosamente guardamos: a de haver sempre alguém pior que nós”.
O palco da narrativa é o bairro da Brandoa e o seu tempo vivido após o terramoto de 28 de Fevereiro de 1969.
Eu era uma gaiato na altura, mas ainda hoje guardo a memória da queda súbita de um sono morno de lençóis para o abismo da louça a trepidar na cristaleira, de ser arrastado para o pátio onde desovavam aqueles resquícios de casas a que nos ensinavam a chamar lar português, com a bênção omnipresente de um crucifixo e de um retrato pardo desenhado a carvão com a esfinge de Salazar, da evocação gritada das mulheres, e dos homens também, a todos os santos duma surda corte celestial a quem pediam proteção, descalços, em cuecas e ceroulas, tentando esconder os pudores embrulhados em mantas rotas e cobertores de papa.
Talvez por essa memória antiga este seja um romance que faz eco em mim. Talvez.
Mas também porque no pátio onde então vivia na Figueira da Foz houvesse um Rogério Paulo, uma cigana Zíngara, um Mário, não uma Noiva de Branco, mas outras mil mulheres castas e que viviam “por conta” de cavalheiros que usavam chapéu e gabardine e fumavam por boquilhas e que cumprimentávamos respeitosamente pelo financiamento amantizado que nos suportava a sobrevivência.
Talvez porque a dois quarteirões também havia um Bairro dos Ricos. Talvez porque tivesse aprendido a ser a Bailarina do meu pátio de tanto treinar a corrida em fugas de medo.
Neste ano de todas as coisas, neste tempo português que hoje partilhamos e onde uns quantos se atrevem ao despudor de se autoproclamar gente de bem e, por consequência, supor uma divisão social por castas, talvez fosse imperativo moral ler este livro do Fernando Ribeiro.
É cruel no dizer, mas verdadeiro no que descreve. Incomoda quando se lê, mas impõe-nos a reflexão devida. Vicia-nos na leitura tão-somente porque as analogias nos remetem ao entendimento empático do outro a quem tão amiúde evitamos, que é um modo possível de sair do bairro.
Texto escrito segundo as regras do Acordo Ortográfico de 1990