Opinião

Santa Terrinha

29 out 2018 00:00

Na noite antes de Trump ser eleito e por causa da diferença horária fiz como muitos portugueses e fui-me deitar, confiando nas sondagens, na vitória de Hillary e sobretudo na confiança de que a democracia não permitiria eleger tal figura.

Essa foi a primeira lição que aprendi.

Estive três anos sem ir aos EUA, alimentado pela revolta europeia, pela admiração por Obama, pela arrogância que nós, europeus, quase todos ex-colonialistas ainda temos e que atingiu o seu expoente máximo em todas as manifestações e conselhos, entre outras condescendências e considerações que enviámos deste lado do Atlântico na altura, e que repetimos, e dobrámos, nestas eleições no Brasil.

Quando lá fui (aos EUA) , há pouco tempo, aprendi outra lição: que as coisas vistas daqui são diferentes e pecam ou por excesso ou por aproximação. Continuo a achar que o Trump é horrível mas o que é que isso interessa aos americanos que votaram ou não nele? Nada.

A América não está great, e tem muito que andar com Trump ou sem ele, até lá chegar. O problema é que para arrumar aquela casa não é assim tão fácil quanto nos parece, 350 milhões de pessoas não são dez milhões. 

Por lá, muita gente acha que a América nunca esteve tão mal, outros nem por isso. Mas uma coisa comum a todos é que todos continuam com a sua vida menos aqueles que, seja quem for o presidente, continuam nas malhas rotas da sociedade americana.

O que vi por lá foram as mesmas tendas nas ruas de Seattle, mercados de droga ao ar livre nas famosas Avenidas Metadona, em Filadélfia ou outras cidades grandes, seringas no chão dos hotéis, muito abandono, mas nada diferente do que já acontecia num país formatado para cada um tomar conta de si e assim viver a lotaria do sonho ou o pesadelo americano.

É isto mesmo que vai acontecer ao Brasil. As pessoas que a política agora divide, juntar-se-ão nos postos de trabalho, nas ruas, nas lanchonetes, e fazer pela vida, que vai ser dura como sempre. O medo de andar nas ruas ontem, vai ser o mesmo medo de amanhã e, daqui a uns tempos, quando o novo xerife se instalar na cidade, ainda irão morrer milhares de pessoas por crime violento, mas também se irá sambar, como nunca, nos passeios públicos.

Quem não perceber esta estranha convivência, alimentada por um número gigantesco (210 milhões de habitantes), entre miséria e esplendor não percebe a história do Brasil, nem de nenhum país das “novas terras”, um oceano depois.

Enviar recados de Portugal, de França, da Alemanha, parece-me um inútil exercício de “solidariedade” e até um cinismo daqueles, bem europeus, que nos caracterizam, por exemplo quando somos mal servidos por um empregado brasileiro que, de imediato, maltratamos, mas depois queremos salvar o Brasil, daqui dos nossos ecrãs e ruas cheias de tuk tuks.

A democracia a funcionar é assim. Nem sempre gostamos dos resultados. Eu detesto o Bolsonaro, e daí? Ao que parece, nem toda a gente, para pasmo da nossa arrogância europeia, nos quer imitar a nós e às nossas instituições e inclinações civilizadas, que nos permitem até modificar resultados de referendos soberanos, fazendo novos quando o resultado não agradou, como de certeza será com o Brexit daqui a uns anos. 

Falar de alto, ou do topo e com condescendência é o pior que podemos fazer aos brasileiros agora, se realmente gostamos do “povo irmão”.  

Eles, e não nós, não terão outra hipótese senão lutar pelo que acreditam, pelo que elegeram (em voto de protesto) ou resistir, usando as armas que são possíveis contra aqueles que na verdade sendo os seus representantes, deram cabo da democracia no Brasil: os políticos.

Porque esta eleição é o quebrar do espelho narcísico dos grandes estadistas, dos grandes reformadores, dos grandes políticos que deixaram apenas a marca da insatisfação popular e foram eles, no Brasil, em Portugal, na Hungria, na Comunidade Europeia, que indicaram o caminho até gente perigosa como Trump ou Bolsonaro.

Dizer que, hoje, é o começo de uma nova era para o Brasil é desrespeitar a luta continua do “elefante geográfico” (como disse Nelson Rodrigues), a luta do seu povo, sozinho, contra a corrupção e contra o crime, fosse quem fosse o líder. Mandar recados e conselhos antes de ir beber copos ao Bairro Alto para matar a indignação é também, acima de tudo, uma falta de educação para com os brasileiros.

A única atitude decente é respeitar a sua escolha, entender a sua História, continuar a celebrar a beleza e a cultura do Brasil que é grande, e nada ou ninguém matará. Estar atento e ser cortês. Confiar.

Não podemos fazer da eleição de Bolsonaro um problema nosso, dos portugueses, da Europa, do Mundo, porque não o é. O que importa a um brasileiro neste momento se o Miguel Sousa Tavares não lhes perdoa e lhes dá às “boas noites” para sempre? Ou se esta ou aquela pessoa está a pensar em deixar de ir ao Brasil fazer concertos? Ou se o BE organiza uma sessão de esclarecimento num sitio fixe? Nada. Não importa nada.

O que importa, com ele não, ou ele sim, é aprendermos a respeitar o Brasil e as suas escolhas e não o continuar a ver como um primo distante, meio tonto, falando no gerúndio e fazendo novela.
 
Portugal deve esse respeito ao Brasil e a todos os brasileiros. 

*músico