Opinião
“Semer”
Não consigo perceber o ódio a movimentos de apoio a pessoas, às causas humanitárias, ao direito constitucional, que se instalam dando lugar a comentários agressivos
Está-me a querer parecer que cada vez mais escasseia a beleza e a empatia, que combatem a barbárie. Ouvia numa entrevista ao talentoso, de coração gigante e no sítio certo, Vitor Torpedo, aka Vitinho, ao Nuno Calado, sobre o seu renovado projecto musical, “Vitor Torpedo and the Pop Kids”, e que me soou mais uma vez uma maravilha para quem gosta de música old school , uma reflexão não muito diferente de muitas minhas e das pessoas com quem tenho conversado, estando à vista de qualquer um de nós que ainda perca tempo nas redes sociais: o discurso do ódio está instalado, as palavras vazias como pedras de arremesso também, e os umbigos dilatam de sentimentos antidemocráticos e nada altruístas…
Não consigo perceber o ódio a movimentos de apoio a pessoas, às causas humanitárias, ao direito constitucional, que se instalam dando lugar a comentários agressivos, de escárnio e de douta sabedoria internauta. Certo que a será na base da democracia esteja a aceitação das diferenças e dos pontos de vista divergentes (mas também o respeito profundo pela sensibilidade do outro), mas se assim é, não consigo compactuar com o que tenho lido e ouvido, com esta banalidade do mal (ver o documentário Hannah Arendt: A Liberdade de Ser Livre, na RTP2) que se instala exponencialmente todos os dias, e que em conjunto parece termos deixado escalar.
Não falo apenas do mundo, mas da incivilidade cada vez menos só aparente do país, ou da nossa cidade, o que me deixa ainda mais apreensiva. Afinal o que é que temos andado todos e todas aqui a fazer? Dizia o Vitinho : “O mais curioso é que muitos dos que compram discos e vêm aos meus concertos, são também os maiores disseminadores de rancor nas minhas redes, será que eles não têm consciência de que as minhas músicas e a minha forma de estar convidam exatamente ao oposto?”
Será que ter um coração inteligente do lado certo, ser ético, cidadão comprometido com a melhoria constante do território de proximidade ou a uma escala mais ampla, ímpetos de justiça e equidade para todas as pessoas, e sonhar com um mundo bom e justo como legado nosso para os nossos filhos é agora um devaneio para minorias?
Vamos, os poucos que restam viver numa kripta antecipadamente, tal seita confortada pela nossa bolha mais íntima, a efabular sobre um mundo melhor? Sem fazer nada? É tempo de eleições e ora se rasgam deliberadamente lonas publicando o feito heroicamente nas redes sociais, ora se tecem comentários jocosos sobre candidatos sejam eles de que partido forem, ora se deseja ódios de morte a flotilhas humanitárias e a quem nelas se envolve, ou se tecem comentários racistas, desrespeitosos, e amplamente anti-democráticos e anti-humanistas.
Criticam-se pessoas e enxovalham-se em praça pública, se tentam diálogos construtivos, porque o que querem é palco e aparecer? A sério, que vamos continuar no nosso balãozinho seguro e vibrante e deixar que isto se torne o novo normal, no banal dos nossos dias ? Deixo uma foto da belíssima exposição “La Vallée de la connaissance”. O autor é Reza, e o seu título é “Semer”.
Penso que diz muito…sem gastar carateres. Porque secretamente ainda acredito ser possível… semear, regar, cuidar, colher.