Opinião

Um certo tipo de prémio

29 set 2022 21:45

Nápoles surpreende-nos nos mais pequenos detalhes

Chegamos antes da hora prevista às catacumbas de San Gennaro, em Nápoles.

Situadas na encosta de Capodimonte, são actualmente um dos locais mais visitados da cidade e o maior complexo de catacumbas cristãs do sul de Itália.

O lugar não se parece com mais um desses sítios turísticos destinados a satisfazer turistas.

Mas antes um projecto de um conjunto de amigos que se quer dar orgulhosamente a conhecer.

A bilheteira está integrada numa sala ampla ladeada por uma pequena livraria e um bar que se prolonga por uma esplanada onde se conversa e lê.

Quem nos atende são rapazes e raparigas muito jovens.

A hora da visita aproxima-se e somos divididos pelos guias que nos repartem por idioma.

Juntamo-nos ao que fará a visita em inglês com sotaque napolitano.

E conduzidos por ele começamos a descer até à entrada das catacumbas.

Enzo é franzino e discreto, mas transfigura-se assim que entra na penumbra do subsolo napolitano acompanhado de uma pequena lanterna com que assinala os segredos dos dois andares visitáveis dos 6000 metros quadrados totais pelos quais as catacumbas se estendem.

Durante os 60 minutos do percurso a sua lanterna aponta-nos os principais pontos de interesse histórico-cultural das catacumbas.

O local onde San Gennaro, o mais importante santo padroeiro da cidade, foi inicialmente enterrado, a tipologia social dos túmulos, os frescos e mosaicos romanos, as igrejas subterrâneas que coexistem com as sepulturas.

A meio do percurso detém-se num pequeno fresco de cor térrea que nos pede para identificar.

Confessa-nos, nos poucos momentos em que se desvia do guião da visita, que é o seu favorito desde criança.

Um pequeno gladiador que lhe povoou o imaginário infantil e que ainda hoje o emociona.

Enzo deixa-nos uns minutos sozinhos antes de terminar a visita para que possamos deambular pelos corredores e fotografar o possível, que é muito pouco.

A luz é fugidia e a câmara não capta a vivacidade da sua voz.

São poucos os degraus que nos levam até à Basilica di San Gennaro fuori le mura onde tudo parece terminar.

Mas Nápoles surpreende-nos nos mais pequenos detalhes.

E Enzo, como filho da cidade e de um dos seus bairros mais pobres, mas também mais autênticos, Rione Sanità, revela-nos que ele, tal como todos os outros jovens que trabalham no projecto de recuperação das catacumbas, foi resgatado de uma vida em que a pobreza, a droga e o crime seriam o futuro mais provável, e que a nossa visita é, afinal, uma contribuição para tornar um outro porvir possível.

Propõe-nos, por isso, à saída, duas vias alternativas – voltar à bilheteira inicial e fazer o percurso até ao centro de Nápoles pela avenida turística, ou sair pela porta oposta da basílica e entrar no coração de Rione Sanitá mergulhando num labirinto de ruas sem cosmética até há pouco tempo dominadas pela Camorra, onde a vida, a morte, a sobrevivência, a fé e o renascimento constante de uma parte da cidade acontece a todo o instante.

Optámos por sair pela porta dos fundos da basílica e pisar o chão de Enzo, e talvez a verdadeira visita a Nápoles tenha sido a que se seguiu.

NOTA: Em 2022 o projecto La Paranza venceu um dos Prémios do Património Europeu atribuídos pela Comissão Europeia às melhores práticas de conservação e valorização do património cultural.

Após vários anos a receber informalmente gorjetas pelo trabalho como guias, um grupo de jovens idealistas originários do bairro Rione Sanitá decidiu abrir o subsolo napolitano ao público, lançar formalmente excursões pagas e fundar, em 2006, uma cooperativa de apoio social aos jovens do bairro e à sua consequente revitalização.