Opinião
Uma pequena luz no meio da grande escuridão
Dentro dos médicos moram pessoas e são essas, as que podem fazer a diferença quando tudo o resto já se despediu
As grandes organizações são entes desfigurados. Sem rosto, ou alma.O Serviço Nacional de Saúde é uma dessas organizações – enorme, monstruosamente complexa, insensível, povoada por milhares de profissionais, gastadora de recursos inimagináveis e com toda a história da Humanidade dentro de um único hospital.
Endurecidos por muita dor alheia, por necessidade de distanciamento para manter o discernimento, muitos profissionais de saúde tornam-se duros e secos. Pouco humanos. Ou talvez já fossem pessoas pouco dadas a generosidades emotivas, mesmo antes de estarem na profissão…
A verdade é que, se o diabo está nos detalhes, a salvação também é aí que se encontra.
Dentro dos dias, dentro da azáfama do rotina, dentro da dor, dentro da impossibilidade, dentro do cansaço, há sempre os uns e os outros.
E na doença que levou de vez o meu Pai em Fevereiro, há um nome que fica a cintilar, pela resposta atenta, disponível e humana, o nome da médica que o acompanhou no Hospital de Stº André. Rita Grácio, a internista que o acompanhou, foi a luz no meio da escuridão que marcou a incerteza dos últimos dias: tudo o que não sabíamos, todo o sofrimento que podia estar guardado para nos apanhar à esquina do tempo.
São detalhes aquilo que lembramos, pois o que importa é a capacidade profissional de usar a Medicina em prol de um corpo que se despede do mundo, exausto. Mas dentro dos médicos moram pessoas e são essas, as que podem fazer a diferença quando tudo o resto já se despediu, embora não o saibamos.
Na tarde em que o meu Pai morreu, esta médica colocava a parafernália de recursos de que a medicina dispõe, ao serviço da réstia de esperança que manteve o meu Pai de olhos postos no próximo almoço – o de leitão que iria juntar todos à mesa – e que afinal não chegou a acontecer. Mesmo inconsciente, teve o melhor que a medicina portuguesa pôde dar-lhe, e um fim sem sofrimento – que é o bem maior que podemos todos desejar.
À Drª. Rita Grácio quero deixar a certeza de que se pode ser mais médico quando se é mais atento, mais disponível para os detalhes, para os familiares, quando se é sereno, quando se luta pela dignidade humana, por doentes de quem afinal não se conhece a história. E a história desse menino que em 1945, desenhava barcos na Escola João de Deus, terminou. O seu barco colorido ficará nas mãos da médica que o acompanhou, atenta, humana, na sua última viagem. Porque um marinheiro não deve nunca morrer sozinho. Para isso já existe o enorme, infinito mar.