Dedica-se sobretudo à certificação dos clubes enquanto entidades formadoras. Os clubes estão cada vez mais bem preparados para formar?
Tendo sido eu dirigente de um clube, contrariamente a muita gente que anda no dirigismo desportivo e que assentou praça como general e nunca foi soldado nem sargento, tenho a consciência de que os clubes são a célula viva disto tudo. A nossa existência enquanto dirigentes associativos ou federativos só faz sentido porque há clubes. O facto de estar numa área que me permite criar as ferramentas para ajudá-los a melhorarem a sua organização interna na sua área mais nobre, a formação desportiva, é muito gratificante. Somos o País campeão da Europa no futebol e no futsal, em seniores e nos escalões de formação. Aparentemente está tudo bem, mas com a evolução do processo de certificação tivemos em 2018/19, pela primeira vez, 754 entidades avaliadas.
Que conclusões tirou?
Percebemos que mais de 80% dos clubes não tinham coisas absolutamente fundamentais para uma entidade formadora, como dossiers de treino em todos os escalões, planos de transição, documento orientador da formação ou acompanhamento médico em treinos e jogos, e quando digo isto não é estar lá um médico, mas pelo menos alguém com suporte médico de vida, o antigo massagista, o fisioterapeuta ou o enfermeiro. Nem sequer tinham coordenador técnico, ou seja, cada equipa era uma ilha e cada treinador era o dono da sua equipa. É como abrir um café e não ter máquina de café nem mesas para as pessoas se sentarem. Achamos que está tudo bem e não está. Este processo obriga os clubes a melhorarem.
A verdade é que formamos alguns dos melhores do mundo. São obras do acaso?
Não. Beneficiamos do facto de termos quatro ou cinco clubes que apanham tudo o que mexe e que depois formam bem. As selecções nacionais também trabalham bem e ajudam a exponenciar essa qualidade, mas nada disso pode ser confundido com o trabalho que se desenvolve nos outros 1.400 clubes. Nos últimos dez anos, quando passámos de quatro escalões de formação para sete, quando passámos a ter benjamins, traquinas e petizes, baixámos na pirâmide. Começamos agora quando as crianças têm quatro anos e isso alterou o paradigma da formação por completo. Com a introdução dos escalões informais, os pais começaram a pagar uma mensalidade. No fundo, os clubes estão a prestar um serviço idêntico ao ballet, à música ou ao inglês.
A formação passou a ser uma das principais fontes de receitas dos clubes e não uma despesa.
O que trouxe problemas novos. Hoje, temos dirigentes de clubes a arrendar a formação como quem arrenda uma casa. É evidente que quem arrenda a formação não o faz para ajudar a formar bem e para promover a prática do futebol. Fá-lo para obter um resultado financeiro. É uma actividade comercial e está pouco preocupado em ter 20 equipas a treinar num campo onde treinavam bem dez. Os pais passaram a interferir no processo e vemos problemas graves nas bancadas, com vê-los à chapada. Só acontece porque não têm cultura desportiva, a maior parte não foi praticante.
Os resultados de Portugal são anormais se tivermos em consideração a dimensão e a população do País.
No conjunto das 54 federações que fazem parte da UEFA, somos dos países com menos número de praticantes. Só no ano passado conseguimos ultrapassar os 200 mil e na formação temos cerca de 150 mil, que comparam com 900 mil da Alemanha, por exemplo. Sempre tivemos menos praticantes do que a maioria dos países europeus, mas temos duas coisas que nos distinguem. Uma é a qualidade natural para a prática do futebol. Somos um bocadinho como os brasileiros e temos qualquer coisa genética que nos dá essa aptidão. Depois, temos meia-dúzia de clubes em Portugal que formam muito bem.
Esses clubes formam bem, mas depois nem sempre apostam nos seus talentos.
O problema é o modelo de negócio ao nível do futebol profissional. Se olharmos para a base da selecção nacional, ela ciclicamente muda de clube. É fruto das dificuldades financeiras de determinado clube, porque quando isso não acontece, o modelo de negócio, muito na base de compra e venda de jogadores, ainda por cima a maioria deles estrangeiros, cria dificuldades de afirmação do jogador português. Se continuarmos a apostar nos sub-23, nas equipas B e a ter boas academias em Portugal, tendo nós essa qualidade genética, não tenho grande receio de perder qualidade. Não vamos formar Ronaldos todos os dias, mas também já se percebeu que conseguimos ganhar sem ele. É porque formamos outros com dimensão muito elevada.
Quilómetros sem fim pelas estradas lusas
Júlio Vieira é homem de longas estradas. Foi, durante seis anos, presidente da Associação Desportiva Portomosense. Depois, durante 17, assumiu os destinos da Associação de Futebol de Leiria, cargo que abandonou em 2016, quando foi convidado por Fernando Gomes, reconduzido em Julho último, para integrar a Direcção da Federação Portuguesa de Futebol (FPF). Anda há quatro anos a “fazer piscinas” diárias entre Porto de Mós, onde reside, e a Cidade do Futebol, em Oeiras, onde trabalha. O carro faz a conta por ele: são “100 a 110 mil quilómetros por ano”. Contudo, sente que o tempo “passou quase sem dar por ela”. Não evitou algumas multas, até porque a principal pasta que assumiu enquanto director da FPF, a certificação dos clubes enquanto entidades formadoras, o obriga a deslocar-se aos quatro cantos do País. São os “ossos do ofício”. “Se a cidade do futebol estivesse a 30 quilómetros de Porto de Mós seria mais fácil. Ou então ir para lá dormir, e podia fazê-lo, mas estar a emigrar, aos 57 anos, não era justo. Nos últimos 30 anos dei muito tempo ao movimento associativo e castiguei muito os garotos e a minha mulher. Eles não reclamam, graças a Deus, mas tenho essa consciência.”
E por que razão é difícil explicar a esses dirigentes que a aposta em jovens portugueses deve ser feita?
O que é difícil é abandonarem a lógica de negócio e não darem primazia à transacção de jogadores e à partilha de comissões. Esse é o ponto da questão. É por isso que assistimos a enormes dificuldades de clubes e a dirigentes muito bem sucedidos na vida. Tem que ver com a evolução do futebol, que se tornou sobretudo num negócio de milhões, e também não é por acaso que em Portugal somos dos países da Europa em que mais comissões se pagam. Mas ninguém tem dúvida, nem esses dirigentes, que o negócio deveria assentar na capacidade de formar bem para depois ter melhores equipas no futebol sénior e obter mais-valias na venda dos passes desses jogadores formados no clube. Só que para o negócio, a compra e venda é essencial e assim muitas vezes se perdem talentos que podiam ser importantes para os clubes e para as selecções nacionais.
A Direcção-Geral da Saúde não permite que os treinos das modalidades colectivas nos escalões de formação decorram de forma normal.
Já estamos nesta vida há seis ou sete meses e se não houver retoma do desporto de formação corremos o risco sério de perder não só uma geração, como perder um número muito significativo de clubes. Hoje, mais de 90% dos clubes vive sobretudo da formação. E não é só da mensalidade, é de tudo o que envolve: o bar a funcionar, as camisolas que se vendem aos pais e os patrocinadores. A máquina está montada em cima da formação e se não arrancar entretanto temo que seja um descalabro financeiro e um descalabro desportivo. O feedback que nos tem chegado é de imensa preocupação. Sobretudo aqueles que já retomaram, cumprindo as exigências da DGS, retomaram com menos de metade dos praticantes e das equipas. Tenho muitas dúvidas que, mesmo com a retoma, os clubes não tenham uma redução muito significativa
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