Entrevista

Isabel Damasceno: "O Portugal 2030 terá um foco muito grande em sectores mais imateriais"

1 jan 2023 13:00

A presidente da Comissão de Coordenação de Desenvolvimento Regional do Centro fala das prioridades do novo quadro comunitário, agora aprovado, e assume-se a favor da regionalização

Maria Anabela Silva

Acabam de ser aprovados os programas operacionais referentes ao próximo quadro comunitário, que atribuem 2,2 mil milhões de euros à região Centro. Que oportunidades e prioridades terá programa 2030?
O Centro 2030 tem muita continuidade com o actual programa, o Centro 2020. E ainda bem que tem. Os apoios às empresas vão continuar a ter uma expressão significativa, para financiar novos projectos ou a remodelação e modernização de unidades e linhas de produção. Passará a haver um foco redobrado na transição digital, energética e ambiental. Existirão também financiamentos expressivos para o ciclo urbano da água e para as questões hídricas. O combate e mitigação das alterações climáticas será outra constante no próximo quadro comunitário. Em paralelo, teremos os apoios mais tradicionais para os municípios, nomeadamente para escolas, regeneração urbana e património natural e cultural. Em suma, há uma lógica grande de continuidade, com o reforço do digital e do verde, precisamente porque são também, do ponto de vista europeu, duas temáticas centrais.

No Portugal 2020, houve também mecanismos de apoios ao micro-empreendedorismo. É para continuar?
Sem dúvida. Foi um instrumento de apoio que teve imenso sucesso e que queremos incrementar, para fomentar o pequeno negócio, que permite a criação de postos de trabalho. Até ao Portugal 2020, o micro-empreendedorismo ficava de fora. Percebeu-se agora que é um mecanismo importante. Não estamos a falar de grandes volumes financeiros, mas de pequenos montantes que fazem diferença nos territórios. É evidente que este instrumento financeiro foi pensado para o interior e para combater as suas fragilidades, mas abrange toda a região Centro. Na região de Leiria houve uma enorme procura de apoios ao micro- -empreendedorismo.

Que importância terão os projectos intermunicipais no novo quadro comunitário?
Muita. Essa é uma lógica que vem do actual quadro comunitário que, não só vai ser continuada, como reforçada. Os projectos das comunidades intermunicipais, com impacto nos diversos concelhos, vieram para ficar, porque deram resultados. Um bom exemplo disso são os projectos de combate ao abandono escolar, desenvolvidos em todas as nossas comunidades intermunicipais e que envolvem trabalho em rede entre os municípios, os agrupamento de escolas e outras entidades, como IPSS. Outro caso de sucesso foram os projectos de produtos turísticos integrados. Os projectos intermunicipais vão ser valorizados e, por isso, terão cada vez mais apoios. Essa valorização dos projectos intermunicipais vem combater a estratégia de ‘capelinha’.

Os municípios estão receptivos à partilha de recursos?
Estão e têm feito um percurso notável nesse sentido. Não se pode esperar que a questão das ‘capelinhas’ acabe totalmente. É evidente que, se um determinado concelho precisa de obras numa escola ou de um edifício novo, o investimento tem de ser feito naquele município e não pode ser partilhado. Há uma evolução natural para a partilha de projectos à qual não é alheio o facto de as políticas públicas e do financiamento disponível ser canalizado para esse tipo de projectos. Ou seja, além da tendência natural, até pelo caminho já feito, há a tendência induzida pela forma como os fundos são distribuídos. É o que se chama fazer política pública de acordo com os objectivos. Os projectos intermunicipais vão ser incrementados naturalmente, para bem da região e das diferentes comunidades.

O Portugal 2030 é o já o sexto quadro comunitário de que o País beneficia. Qual a mudança mais estrutural que estes fundos permitiram concretizar?
A grande mudança foi ao nível das infra-estruturas. Conseguiu-se uma transformação fantástica. Nós, portugueses, temos uma tendência natural para a memória curta. É inegável que o Portugal antes do 25 de Abril e dos fundos europeus nada tem que ver com o Portugal de hoje. Tínhamos um País francamente atrasado naquilo que são chamadas as infra-estruturas básicas. Não havia saneamento e, em muitas situações, fornecimento de água potável. Não tínhamos escolas, estradas, centros de saúde. Faltava-nos o básico, aquilo que é fundamental para as pessoas terem o mínimo de qualidade de vida. Os fundos provocaram uma verdadeira revolução a nível das infra-estruturas do País e, consequentemente, na qualidade de vida dos seus cidadãos. Depois, a introdução dos apoios massivos às empresas teve um efeito muito importante na sua competitividade, internacionalização e modernização, com o consequente aumento das exportações. E isto foi feito continuando a haver apoios para as infra-estruturas. Realço ainda o apoio ao sistema científico e tecnológico, à investigação, à inovação e à criação de novos produtos por parte das universidades, politécnicos e centros tecnológicos. A área da formação também teve uma importância muito grande. Ao nível do abandono escolar, por exemplo, Portugal tem hoje números concorrentes com os melhores da União Europeia.

Muitas das infra-estruturas e equipamentos precisam de requalificação. Vai haver financiamento para tal?
É, de facto, preciso requalificar e modernizar aquilo que foi feito há muitos anos. Aponto como exemplo o ciclo urbano da água. O País tem o problema do abastecimento de água resolvido, mas há agora que atacar as perdas de água, resultantes do envelhecimento das redes. No Portugal 2030 haverá fundos para a renovação das redes de água e para atacar esse problema das perdas. Não abandonando as infra-estruturas, porque ainda continuam a ser necessárias, o Portugal 2030 terá, no entanto, um foco muito grande em sectores mais imateriais, como o combate ao abandono escolar, a cultura e a programação cultural em rede. São áreas que não fazem descerrar placas nem envolvem betão, mas que têm uma importância muito grande para o bem-estar das pessoas.

Como poderão as empresas e os municípios aproveitar da melhor forma os fundos que aí vêm?
Não haverá grandes diferenças em relação ao que se passou com o Portugal 2020. A maior parte das empre- sas conhece bem as regras e o tipo de projectos que são valorizados. Agora, haverá uma acção mais dirigida para os territórios, com avisos específicos para o interior, que tem especificidades próprias. Pretendemos fazer uma forte divulgação das várias linhas de apoio junto das associações empresariais, com sessões para empre- sários, para que possam conhecer as oportunidades que têm e quais as regras do jogo. É comum ouvirem-se críticas ao excesso de burocracia associada às candidaturas. Compreendo as queixas e lamentos, mas não há perspectiva que os processos possam ser muito diferentes. A máquina está bastante oleada, o que não quer dizer que não haja melhorias a introduzir e tudo faremos para que isso aconteça. Não nos podemos esquecer que estamos a tratar de fundos públicos, que vêem dos impostos de todos os europeus. Portanto, as regras e as exigências continuarão a ser muitas. Não vale a pena pensarmos que o facilitismo vem aí e que, de repente, a candidatura passa a ser apenas um papel e que para submeter um pedido de pagamento basta um papelinho. As exigências, o rigor e objectividade associada às candidaturas vai continuar a existir. Da nossa parte, há e haverá uma grande preocupação em informar. Muitas vezes, por desconhecimento, as pessoas cometem erros nas candidaturas, o que atrapalha e atrasa os processos. Quanto mais informadas estiverem as pessoas, mais ficam habilitadas e menos asneiras fazem quando submetem as candidaturas. Assim, a probabilidade de os prazos serem mais rápidos é maior. Mas que não subsistam dúvidas, não vai haver facilitismos na atribuição de fundos.

A região de Leiria têm sabido tirar o devido proveito dos fundos estruturais?
Muito bem. É um orgulho muito gran- de. Não posso esconder nem enjeitar as minhas raízes, não de nascimento mas de vida, e fico muito contente quando fazemos as nossas análises e percebemos, por exemplo, que nos fundos comunitários utilizados pelas empresas a nível do Programa Operacional Regional, a Comunidade Intermunicipal (CIM) de Leiria está sempre em primeiro lugar, um pouco acima de Aveiro. Só quando entra também a análise aos fundos que vêm do Compete nacional é que Aveiro ultrapassa Leiria, mas por pouco. Isto é demonstrativo da dinâmica empresarial desta região, o que não é novidade para ninguém, e da capacidade de utilizar os fundos. Esta capacidade é extensível aos municípios que têm aproveitado bem as oportunidades, uns melhor do que outros, naturalmente. De uma maneira geral, a região de Leiria é uma boa utilizadora de fundos comunitários. Apesar das mudanças que referiu e das melhorias inegáveis associadas aos fundos estruturais, subsistem ainda assimetrias regionais. Essas assimetrias não se fazem sentir tanto ao nível das infra-estruturas. No nosso interior mais profundo temos boas infra-estruturas, como escolas, teatros e centros de saúde e qualidade ao nível da regeneração urbana. O que falta no interior são pessoas. E para haver pessoas no interior, tem de haver competitividade, que traga mais emprego. Não vamos fazer milagres. Não tenhamos ilusões: não conseguiremos repor os níveis populacionais que já houve em tempos idos. Temos de fazer com que quem reside no interior tenha boas condições de vida para não se vir embora. Nesse sentido, é importante que as infra-estruturas sejam competitivas com as do litoral. Precisamos também de incentivar a competitividade, com apoios específicos para estes territórios, nomeadamente à cria- ção de novas empresas e à amplia- ção e modernização das existentes. Veja-se o exemplo do Fundão, que é um caso extraordinário de atractividade de pessoas qualificadas na sequência da instalação de empresas modernas e tecnológicas, que actuam e trabalham para o mundo inteiro. A par da competitividade, que tem de ser estimulada com a abertura de avisos próprios, é preciso atacar o problema da habitação, que também se faz sentir no interior, de forma a servir quem se queira fixar nesses territórios. Há que incentivar a iniciativa privada para investir nesta área, mas os municípios também têm de actuar, aproveitando o dinheiro disponível, nomeadamente, do PRR (Plano de Recuperação e Resiliência).

“Sou uma defensora da regionalização, mas com referendo e cinco regiões”

Vem aí um grande desafio para as Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR), que irão receber novas atribuições e serviços desconcentrados do Estado. Estão as comissões preparadas para a avalanche de competências a receber?
As estruturas que vão passar a depender das CCDR continuarão a funcionar e a exercer localmente a sua função, mas com uma coordenação e pensamento regional. Será esta a grande diferença. A maioria dos funcionários dos serviços desconcentrados do Estado continuará a trabalhar onde está. É natural que a nível de coordenação uma ou outra pessoa passe para as actuais instalações da CCDR. O pequeno agricultor de uma aldeia de Castelo Branco, por exemplo, que precise de tratar de um papel nos serviços da direcção regional vai poder continuar a fazê-lo. E isso acontecerá com as outras áreas. Os serviços mantêm-se onde estão. O que se pretende é criar um pensamento regional. E essa estratégia não se consegue sem pensar a educação, a cultura, a agricultura, a economia ou a saú- de. Todas estas áreas têm que ser pensadas a um nível regional. Há também questões relacionadas com a coincidência territorial.

Neste momento temos direcções regionais que não coincidem territorialmente com a área da CCDR. É um passo a caminho a regionalização?
É. Por isso precisamos que corra bem. Estamos a dar um passo revolucionário em termos de descentralização. Precisamos de boa coordenação e de um bom pensamento regional, para depois pormos os diferentes membros da orquestra a tocar em sintonia. Estou absolutamente convicta que se o passo que estamos agora a dar correr bem, como eu penso que vai correr, há uma probabilidade mui- to grande de, quando for referendada, a regionalização seja aprovada. É preciso que os cidadãos sintam melho- rias em relação aquilo que tinham antes desta descentralização. Estamos a dar um passo grande, mas não é um passo no escuro. É bem pensado e com razões de ser.

Defende a realização de um referendo à regionalização?
Sou uma defensora da regionalização, mas com referendo e com o formato das cinco regiões [Norte, Centro, Lisboa e Vale do Tejo, Alentejo e Algarve].

Se tivesse havido regionalização, as assimetrias regionais teriam sido mais esbatidas?
É difícil saber isso. Fui uma opositora à regionalização anterior, devido ao modelo que foi a referendo, que, na minha opinião, era um absurdo total. Estava assente em oito regiões. Não tinha nada a ver com nada. E isso matou o processo. Acredito que, se se avançar com uma proposta de criação de cinco regiões e se o passo que está a ser dado, com a descentralização de competên- cias, tiver sucesso, a regionalização será boa para o País.

Faz parte do primeiro grupo de presidentes de CCDR escolhidos para a função através de eleição. Tem algum significado especial ocupar o cargo por essa via em detrimento da nomeação política?
Dá outra legitimidade democrática. Não é uma eleição universal, mas é um sufrágio com colégio eleitoral bastante interessante, por ser representativo de todas as assembleias e câmaras municipais da região.

Foi também pioneira ao ser a primeira mulher, e até agora única, eleita para a Câmara de Leiria e das primeiras no País. Esperava que, passados estes anos, houvesse uma maior participação das mulheres na vida política?
Confesso que sim. Estes processos, que implicam alteração de mentalidades e de culturas, têm uma evolu- ção natural. O facto de as mulheres terem cada vez mais competências e mais formação académica, permiti-lhe uma ascensão natural, que já acontece em muitos sectores da sociedade. Na medicina ou na magistratura as mulheres estão agora em maioria. Nas autarquias, esperava que a evolução fosse mais rápida. Nas últi- mas eleições houve até um ligeiro decréscimo no número de mulheres eleitas. Mas o caminho faz-se caminhando.

Dos vários cargos que desempenhou, qual qual foi aquele que mais a realizou?
É difícil dizer, porque gostei de todas as três grandes marcas da minha vida profissional. O que fiz no sector privado, enquanto quadro da então Por- tugal Telecom, ajudou-me muito e deu-me uma bagagem enorme para aquilo que fiz a seguir. Depois, gostei muito de ser presidente de câmara. É o lugar político de maior atracção para fazer coisas. Conseguimos ver, quase no imediato, o resultado do que fazemos. A proximidade com as pessoas, a quem tentamos resolver os problemas, permite-nos ver o efeito da nossa acção. Isto não tem paralelo com qualquer outro cargo, seja de secretário de Estado, ministro ou primeiro-ministro. Mas também gosto muito do que faço agora, pela cumplicidade com os actores da região, sejam eles as associações empresariais, as universidades, os politécnicos ou os municípios. Há aqui uma permanente troca de aprendizagens e de ajuda, que me atrai muito.

A máxima de não voltar ao sítio onde onde se foi feliz é aplicável ao seu caso?
Completamente. Isso [ser autarca] foi uma fase da minha vida muito gratificante, mas que já lá vai. Teve coisas boas e más, como tudo na vida. Contudo, o balanço é claramente positivo. Tenho consciência que deixei uma marca muito agradável em bastastes aspectos da vida do concelho. Se voltava a fazer tudo outra vez? Sim, mas com as correcções que a aprendizagem da vida nos traz. Foi muito gratificante ser presidente de câmara, mas foi uma vez na vida. É passado.