Sociedade

João Paulo Sousa: "Nas crianças, o uso precoce de sistemas informáticos 'miopisa'"

21 out 2016 00:00

O director do Serviço de Oftalmologia do Centro Hospitalar de Leiria lamenta que, ao nível da distribuição de especialistas, as unidades mais pequenas estejam “subjugados aos 'porta-aviões', que são os hospitais centrais”.

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Maria Anabela Silva

A presidente da Sociedade Portuguesa de Oftalmologia alertou, na semana passada, para o aumento de pessoas que não usam óculos por falta de dinheiro ou que nem vão às consultas porque depois irão precisar de óculos. Esta é uma realidade com a qual também se confronta no serviço?
Cada vez mais se coloca essa questão. Costumo comparar a oftalmologia e a psiquiatria. Um psiquiatra, com o doente à frente, faz quase tudo. Ao oftalmologista, basta falhar a electricidade para não conseguir fazer nada. Não consigo ver um olho sem um microscópio e sem exames complementares de diagnóstico. A oftalmologia é uma especialidade que exige grande suporte financeiro, tanto ao nível de equipamento como de gastos para o doente. Os genéricos vieram reduzir bastante os custos dos medicamentos. Mas como faço isso com os óculos? Não existem lentes progressivas baratas. Existem óculos e lentes mais baratas, mas há, de facto, diferença de qualidade. Nos EUA ou na Suíça, quando se opera às cataratas, muda-se logo a lente até a pessoa ser operada ao segundo olho. Em Portugal não há capacidade económica para isso.

Há uns anos, havia um certo receio de ser operado aos olhos. Hoje, com o avanço da tecnologia, esse tipo de reacção ainda existe?
Ainda há pessoas que têm receio em deixar mexer no olho. Mas, o avanço tecnológico facilita imenso os nossos actos. Quando comecei a praticar oftalmologia, não mandava o doente embora uma hora depois da operação a uma catarata. Hoje, isso faz-se. Há uma segurança brutal, com o conforto para o doente e para a família. É possível alguém ser operado a uma catarata às 10 horas da manhã, à noite estar a entrar num avião e no dia seguinte aterrar em Nova Iorque, sem qualquer tipo de problema. Claro que isto não é válido para todo o tipo de cirurgias. O avanço não é só ao nível da tecnologia, mas também em termos farmacológicos. Hoje, há fármacos tão purificados que se podem usar no interior do globo ocular. Nesta área, duvido dos genérico. Não é possível um produto destes ser barato. Outro exemplo: hoje, para preparar um doente para a operação a uma catarata, meto-o na sala, injecto-o no olho e a pupila abre. Isto custa oito euros. Poupo o doente, que já não precisa de vir uma hora antes, mas também poupo em pessoal de enfermagem e administrativo. O problema é convencer os políticos, que estão a trancar as despesas, que têm de gastar mais oito euros.

O que é que, ao nível da oftalmologia, ainda não é possível fazer no Centro Hospitalar de Leiria?
A patologia mais perigosa são os tumores, que são raros, mas que nos obrigam a transferir os doentes. Isso também acontece com as doenças dos prematuros. Por várias restrições, as crianças com menos de dois anos são encaminhadas para hospitais pediátricos. Também ainda não fazemos intervenções a laser na córnea em tratamentos de miopia e estigmatismo, mas iremos começar a fazer. Estamos a aguardar a aquisição de equipamento. Penso que será uma questão de dois ou três meses.

O serviço de oftalmologia do CHL não assegura urgência 24 horas por dia. Ainda subsiste o problema da falta de médicos? Ainda. Continuamos a ter dificuldades na captação de jovens médicos. Nas unidades mais pequenas estamos subjugadas aos 'porta-aviões', que são os hospitais centrais. Os médicos formados nesses hospitais não são obrigados a sair. Continua a haver uma grande discrepância na distribuição de especialistas. Temos 40 ou 50 clínicos de uma determinada área nos hospitais centrais e dois ou três nos mais pequenos. Isto é um absurdo. O Amadora-Sintra, que é um grande hospital, também só faz urgência de oftalmologia como nós, das 8 às 20 horas. Abrem-se vagas que não são preenchidas porque é permitido aos médicos continuarem nos hospitais centrais. Um clínico que vai a concurso não é obrigado a tomar posse da vaga a que concorreu.

E devia ser obrigatório?
É duro falar assim, mas se calhar devia ser. Quando alguém sofre um traumatismo em Leiria ao fim-de- -semana ou depois das 20 horas reclama porque não há oftalmologistas de serviço. Mas a culpa não é nossa. Não há meios suficientes para assegurar as escalas. Nessas circunstâncias, o doente tem de ser encaminhada para Coimbra ou para Lisboa.

Não faria mais sentido 'trazer' o médico para cá?
Claro que fazia. Diga isso ao ministro da Saúde. Nos últimos cinco anos, abriram-se sempre vagas para oftalmologia neste hospital. Nunca foram preenchidas. E quem concorreu, acabou por ficar no sítio onde fez a formação, com contratos para os quais nem sequer havia concurso. Isto é completamente obsoleto.Temos hoje no SNS [Serviço Nacional de Saúde] várias categorias de médicos: o funcionário público, que é o que ganha menos; e o contratado, que vem através de empresas, com os hospitais a serem, mais ou menos livres, de praticarem o preço que querem. Se um hospital paga x e outro y, o director de serviço tem de se cingir ao que a administração está disposta a pagar. Há ainda os médicos contratados à hora ou à 'peça'. Em Portugal, não existe uma carreira médica. Esta discrepância cria clivagens e traz dificuldades crescidas na elaboração de escalas de serviço.

O uso e abuso que fazemos hoje das tecnologias está a afectar a nossa saúde visual?
Está. E isso acontece por várias razões. Por exemplo, porque a pessoa devia usar óculos e não o faz e, com a utilização desses mecanismos, entra em cansaço, começando a ter sintomas. Também pode acontecer porque os componentes electrónicos não são correctamente usados. Se a luz do sol estiver a incidir no ecrã, provoca reflexo e faz com que a pessoa, mesmo vendo bem, faça um esforço suplementar. Nas crianças, o uso precoce de sistemas informáticos 'miopisa'. Essa utilização obriga permanentemente a focar ao perto, provocando algum grau de miopia.

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