Desporto
Mais 345 quilómetros nas pernas para avivar o corpo e a amizade
João Colaço participa a partir de sábado na "Race Across Scotland"
Camaradagem. Solidariedade. Irmandade. No dicionário são três sinónimos de companheirismo, mas numa ultra-maratona são palavras com significados complementares.
Foi em Janeiro de 2015 que João Colaço conheceu melhor do que nunca a acepção dessas palavras, no decorrer da Spine Race, uma corrida de 431 quilómetros pelo trilho Pennine Way que unem a pequena vila de Edale, em Inglaterra, a Kirk Yetholm, já dentro da fronteira escocesa.
Estava muito frio, muita neve, muita chuva, muito vento e muita lama. O ultra-maratonista da Marinha Grande demorou mais de seis dias para concluir a prova. “À partida já ia com medo”, receios confirmados no decorrer do teste, “seguramente”, o mais perverso que fez. A água congelava dentro dos bidões, mas não só.
“Em algumas subidas tive de me agarrar às escarpas para não ser literalmente levado pelo vento”, recordou. As sapatilhas passaram uma semana encharcadas. “Nem para andar dava, quanto mais pensar em correr. Os pés estavam sempre enfiados na lama e para levantá-los era preciso fazer muita força.”
Mas o maior problema de João Colaço foi outro. Com pouca experiência em navegação, seja por GPS ou por mapas, esteve muito perto de não chegar ao fim pela primeira na carreira de centenas de provas.
“Chovia muito, não via um palmo à frente do nariz e encontrava-me com extrema dificuldade em encontrar o percurso certo. Estava prestes a pedir o auxílio da organização e se tal acontecesse seria desclassificado.” Foi aí que percebeu o tal sentido das palavras com que começámos este texto.
Naquele momento apareceu Neil Rutherford, um agente da polícia escocesa que também competia na Spine Race e que lhe indicou o caminho e nos contou a história. “Vi uma cabeça à distância e, a princípio, não acreditei que fosse um spine runner. As luzes dos nossos frontais cruzaram-se e usei a cabeça para indicar a rota correcta. Encontrámo-nos. Era o João. Parecia fresco e forte, ser estar com problemas físicos, apenas de navegação.” Dois desconhecidos continuaram juntos.
“Sou uma pessoa faladora e fiquei feliz com a associação. O João é engraçado e fartámo-nos de rir. Naturalmente, a diversão durou pouco pois ele começou a lutar contra a privação do sono”, recorda Neil, que deixou João para trás num posto de apoio, pensando que o português iria desistir devido às dores nas costas que sentia. Mas não. João seguiu e encontrou novamente Neil após uma “brutal tempestade de neve”.
Sem saber por onde seguir, estava a pensar solicitar ajuda à organização. “Vi uma lanterna de uma pessoa à procura do caminho. Perguntei-me quem seria. Não pude acreditar, era o João”, recorda Neil Rutherford. A partir daí fizeram o caminho praticamente juntos e cortaram a meta em simultâneo.
“O Neil deu-me muito conforto. Naqueles momentos, em que não estava na posse de todas as faculdades, após dias a fio sozinho, foi ele que me deu a mão.” Está fácil de ver que dali nasceu uma forte cumplicidade.
Eram dois seres a caminharem lado a lado, sem pompa, apenas a tentar superar os próprios limites. É essa amizade o impulso mor para o próximo desafio do ultramaratonista da Marinha Grande. Chama-se Race Across Scotland começa no sábado e, como o nome indica, trata-se de um percurso de 345 quilómetros que atravessa Escócia pelo Southern Upland Way, de Portpatrick até Cockburnspath, um trilho que reflecte a turbulenta história com os vizinhos ingleses.
Não havia forma de dizer que não. Para quem já fez 865 quilómetros pelo Pirenéus ou atravessou o deserto do Sahara em total auto-suficiência, não parece um repto por aí além. “E não é”, sublinha o atleta.
“Vou a convite do Neil e da organização. Não tem a dureza de uma prova nos Alpes ou nos Pirenéus, ainda por cima numa altura em que o clima é ameno, mas é um país que não conheço e tenho a impressão que será muito interessante, com paisagens brutais, apesar de 350 quilómetros serem uma distância de respeito quando o tempo limite são 100 horas.”
E como a amizade é algo que João Colaço muito preza, com ele vai o colega de eleição. Jorge Serrazina, com quem, no ano passado, fez os 233 quilómetros da Eufória dels Cims, prova em duplas disputada em território andorrano. Ou grande parte dos tais 865 quilómetros da Transpyrenea.
“Temos feitios parecidos. Somos calados e vamos bem, em sintonia. Não é preciso estarmos a conversar para sentirmos companhia. Mesmo assim, fala-se de tanta coisa…”