Opinião
15 de outubro de 2017. Um puzzle por montar
O sistema de rega ligado, as telhas, as persianas encharcadas e os baldes cheios de água da mangueira
Podemos sempre jogar com as palavras, como quem joga à bola e marca golos; como quem joga ao toca-e-foge e não é apanhado; como quem joga ao quarto escuro ou ao pião e lança os dados, quando as frases curtas nos acompanham.
É quase sueca ou damas, em que no fim, não há vencedores: há quem leia o que é escrito.
15 de outubro de 2017. Uma data lembrada por muitos e esquecida por outros. É o jogo que decidi jogar hoje: o jogo da memória.
Nesse dia, lembro-me de que havia um forno lá fora. Fazia calor de agosto, num domingo de passeio, e o Pinhal de Leiria ainda era verde, mas vamos aos factos:
15 de outubro de 2017 foi considerado o “pior dia do ano”, em termos de fogos florestais, que atingiu mais de 1500 casas. Durante este mês morreram 49 pessoas na maior parte dos casos a tentar combater não um desastre provocado pela natureza, mas um desastre provocado por humanos.
E não, não estamos a falar de Squid Game, a série do momento, ou The Hunger Games inspirado em cenas da Guerra do Iraque.
Fala-se do que se sabe, do que se viu e do que não se esquece porque é preciso, por vezes, falar de nós para tentar que o outro conheça não aquilo que somos, mas aquilo que vivemos.
No dia 15 de outubro de 2017 quase perdi a minha casa. Estava longe e de repente, sem me lembrar bem como, fiquei perto.
Vi a minha família ter de abandonar o nosso posto e procurar “asilo” num sítio com conforto, enquanto ao nosso teto chegava um incêndio que parecia não ter fim.
Recordo-me de um telefonema da minha mãe que, depois de deixar a minha irmã e a minha avó num lugar seguro, tentou voltar. A voz meio tremida dizia que já não tinha conseguido passar e contavam que tudo ardia.
Desde São Pedro de Moel à Mata da Marinha Grande, Vieira de Leiria e Praia da Vieira, e ainda pelo meio, onde nós morávamos.
A certa altura, recebi mensagens pelo Facebook de que a minha casa tinha sido atingida pelo fogo e não se vislumbrava nada mais, além de bolas de fogo, no momento em que estava a caminho para tentar salvar ou ver o que não tinha perdido.
Depois de pensar que tudo podia ter desaparecido e sem conseguir ir até casa, conheci uma rapariga cujo avô morava perto e me disse: “é mentira. A tua casa não ardeu. Estiveram lá bombeiros e está tudo bem.”
E, afinal, descobrimos que há jogos piores que o jogo do susto.
O meu pai. Um homem extremamente cauteloso, que consegue agir nas situações mais adversas com sangue frio, mesmo com um coração de manteiga, ainda tentou passar a barreira que se fez, quando deixou a nossa casa com tudo pronto para o que viesse dali.
O sistema de rega ligado, as telhas, as persianas encharcadas e os baldes cheios de água da mangueira, tendo apenas a Esperança de que alguém viria, se fosse preciso. E foi!
Quando finalmente pudemos passar, eram 4h da manhã.
O fogo começou a meio da tarde do dia anterior e ainda se via focos de incêndio à porta de casa. Há nossa volta era cinza e preto por toda a parte, pois, nem as luzes conseguiam iluminar o que tinha sido destruído com 700 anos.
Chegámos e o sistema de rega ainda funcionava, as persianas e as telhas estavam sujas do fogo e os baldes, deixados cheios de água, estavam vazios. Sobrou a Esperança que tinha passado por lá.
O mais chocante de tudo o que se passou, foi no dia a seguir, quando fez dia, e vi que o meu quintal estava intacto e o do meu vizinho tinha ardido, em grande parte. É uma imagem que nunca sairá da minha memória.
Depois, fui até à praia de carro e lembro-me de ver uma pessoa conhecida à procura dos cães que tinham desaparecido a fugir do fogo e que até hoje nunca apareceram.
Vi a escola onde estudei, salva, quando os pinheiros à volta tinham morrido e tudo parecia a ressaca de uma noite de copos em que não sabes bem o que aconteceu, mas que só te apetece voltar a dormir.
Há uns meses, deu-se a coincidência de estar à mesa do café com alguém dos Bombeiros Voluntários de Leiria e conversarmos sobre este dia.
Recordo-me de querer começar o jogo das perguntas para as quais, ainda hoje, não tenho resposta.
Soube que foi um dos que sobreviveu, depois de ter cavado um buraco para se esconder do fogo, com os seus companheiros, a 2 minutos de onde vivia.
Falámos pouco, mas muito porque, neste caso, não existem jogos de palavras que façam a diferença. É um exemplo crasso de que só as ações poderão recuperar o que foi extinto. E mesmo assim…
No dia 15 de outubro de 2017, 86% da Mata Nacional de Leiria ardeu.
Passado quatro anos, pouco foi feito, quando se junta as muitas promessas de milhões e intervenções de gestão pública destinada à recuperação das áreas ardidas, com mais de 11 mil hectares e do fracasso em intervir na sua recuperação.
Se tivermos a experiência de fazer a estrada da Marinha Grande até Vieira de Leiria só há um cenário por descobrir: abandono, lixo, degradação e nada que nos console. Além do mar… ao fundo.
Ao longo destes anos tenho jogado a algo que não quero jogar mais, porque é preciso fazer melhor, quando tanto mal foi feito.
E esse jogo… é o jogo da paciência.
Texto escrito segundo as regras do Acordo Ortográfico de 1990