Opinião
A boina
O suporte está desocupado, como um cabide sem roupa; e foi aí que o senhor Manuel pendurou a sua boina
Visito a Unidade de Cuidados Paliativos do Hospital de Alcobaça na companhia da equipa da SAMP que aí desenvolve o projecto Aqui Contigo. Entramos num dos quartos e rodeamos a cama do senhor Manuel, que permanece imóvel durante toda a visita. O que mais me impressiona no quarto é a ausência de sinais de intimidade, de objectos pessoais, de evidências aleatórias de vida (uma peça de roupa fora do sítio, um copo meio cheio, um saco de supermercado com bolachas ou fruta, uma embalagem aberta de lenços de papel, uma revista de celebridades amachucada: nada).
Como se não existisse tempo ou espaço para a individualidade, como se a passagem por ali fosse tão provisória que não houvesse necessidade de deixar marcas pessoais. Nada. Com uma excepção: junto ao topo da cama existe um daqueles suportes metálicos que se encontram em todos os quartos de hospital e que servem para suspender as embalagens de soro ou de outros fluídos salvadores.
O suporte está desocupado, como um cabide sem roupa; e foi aí que o senhor Manuel pendurou a sua boina. Próxima, ao alcance do olhar sem necessidade de mover a cabeça; ao alcance da mão caso seja possível erguer-se da cama e abandonar o quarto de hospital. É provável que o senhor Manuel não volte a usar a boina; mas a sua presença simboliza uma poderosa ligação ao passado e a uma possibilidade de futuro; simboliza uma subtil apropriação do espaço, transformando-o em casa; simboliza uma consciencialização de que se está sempre de passagem.
Ou talvez seja tudo imaginação minha; mas sinto-me incapaz de esquecer a boina. A Raquel, o David, a Joana e o Umberto ocupam-se do senhor Manuel, dando-lhe música, atenção, tempo, amor; como se estivessem na presença não de um quase desconhecido mas do próprio pai. E o senhor Manuel, imóvel e rígido, que tem todos os sentidos reunidos no olhar, recebe tudo o que lhe trazem; no final, faz um esforço e diz numa voz ténue e quase imperceptível: muito obrigado. E repete: muito obrigado.
A Raquel, o David, a Joana e o Umberto reúnem a sua parafernália de instrumentos e artefactos musicais, despedem-se, seguem para outros quartos. Visitam o senhor Nuno, o senhor Coutinho, o senhor António, a senhora Lúcia; a cada um, entregam música, afecto, humanidade; a cada um entregam, também, aquilo que sentem estar mais em falta no momento da visita: pode ser companhia, pode ser alegria, pode ser leveza, pode ser riso, pode ser harmonia, pode ser distracção, pode ser toque.
Quando saem de cada quarto, fico para trás e permaneço durante alguns segundos a escutar o silêncio que fica, como um rasto; o silêncio do vazio que nunca é realmente silêncio: porque subsiste o rumor sofrido, tão mecânico quanto humano, ora pacificador ora angustiante, da respiração; essa melodia ancestral que pode cessar a qualquer momento. As visitas terminam, o regresso a casa impõe-se, a vida prossegue.
Passaram dez dias desde que conheci o senhor Manuel; e não houve um único em que não pensasse na sua boina.