Opinião
A centralidade do afecto no encontro com pessoas que usam drogas
Este ano celebro 20 anos de Psicologia.
Uma carreira fundamentalmente vivida por entre equipas multidisciplinares e maioritariamente na intervenção em Comportamentos Adictivos e outras Dependências (CAD).
Primeiro uma breve passagem pela Arisco, na Equipa do Oeste, com o projecto “Aventura na Cidade”.
Depois de Lisboa para Grândola, para trabalhar em part-time como psicóloga clínica na Comunidade Terapêutica “A Ponte”. Em seguida, de Lisboa para Bragança e as suas “10 horas de distância” distribuídas em quase quatro anos de trabalho intensivo na Equipa de Tratamento de Braganç a para depois regressar a Lisboa e à E quipa da Unidade de Alcoologia onde já estou há 12 anos.
E, pelo caminho, também houve o Núcleo das Doenças do Comportamento Alimentar no Hospital de Santa Maria. Estes 20 anos reflectem muitas intensidades, muitos afectos e emoções fortes, grandes aprendizagens, desafios diários, e algumas birras pessoais pelo meio, a fazer lembrar o Dr. Joel Fleischman na série “Northern Exposure”, um jovem médico recém-licenciado, tal como eu, e que vindo de Nova York foi obrigado a iniciar a sua prática clínica na excêntric a cidade Cicely no Alasca.
Mas, na verdade, tal como Joel Fleischman, fui crescendo e fui-me ligando e afeiçoando às diferentes pessoas com quem me fui cruzando nas diferentes cidades e seus ambientes, interioridades e particularidades.
Tornei-me mais humana, mais compreensiva, mais atenta e mais segura do valor que tem a importância de estabelecer, no trabalho clínico diário com pessoas que usam drogas, uma “nova relação” que securiza, que aceita a pessoa onde ela está e que, simultaneamente, consegue dar espaço e voz a dores antigas e escondidas que durante anos a fio só puderam ser anestiadas, quer em contexto do tratamento quer em contexto da redução de danos. E muitas e muitas vezes ouço: “Dra. se eu parar dói”.
E aqui emerge o lugar da centralidade do afecto. A afectividade é absolutamente central em toda a experiênc ia humana.
Trata-se de um conhecimento de nível visceral, veiculado por memórias processuais profundamente implantadas no nosso corpo e na personalidade de cada um de nós, que vão influenciar determinantemente a nossa experiência relacional com o mundo (interno e externo) pela vida fora.
E isto conta, conta muito, porque no coração do nosso desenvolvimento está a relação, o colo, a empatia, o afecto, a colaboração. E a relação implica sempre que o objecto de amor seja primeiramente investido. Como afirma Coimbra de Matos (2017): “melhor vinculação parental, maior resiliência do filho”.
No entanto, não foi assim com o António (nome fictício). Em lágrimas dizia-me: “Eu não presto, eu bati, eu agredi, eu maltratei, como é possível eu estar agora aqui a chorar compulsivamente ao pé de si ?!”
Porque aqui pode, digo-lhe. Nesta nova relaç ão terapêutica é agora seguro para o António poder chorar os choros interrompidos, as necessidades de afecto e de segurança tantas vezes engolidas e logo a seguir anestesiadas pelo álcool e pelas drogas e fazer-se passar apenas por ser o “feio, porco e mau”, fruto de uma violência familiar traumática que sofreu muito antes de a exercer.
Aqui e agora na nossa relação é possível escutar para além do óbvio e dar nome à dor e chorar, confiar e encontrar as palavras capazes de restabelecer a comunicação consigo próprio e também comigo.
Agora já não está sozinho e juntos poderemos vir a encontrar novas formas de se transformar e desenvolver, alcançar a consciência de que existe e tem um lugar de afecto capaz de construir um projecto futuro, desejar viver, amar e ser feliz.