Opinião
A cor que a terra tinha
Isto era num tempo em que não se arremessava sopa contra obras consideradas primas
Há já seis décadas que o senhor Gagarin voou numa lata de conservas e viu o nosso planeta como nunca ninguém o tinha observado: é azul, disse. E todos acreditámos e continuamos a acreditar porque até prova em contrário presume-se da inocência da Terra. Isto era num tempo em que não se arremessava sopa contra obras consideradas primas e nas quais, uns raros e talentosos pintores, nos mostravam a terra tal como a percecionavam: a cores, pois então!
Creio que também a terá visto esférica, mas quanto a isso alguns há que duvidam da sua redondeza, afirmando que é tão plana quanto o seu pensamento. A mim diverte-me a ideia de viver assente num imenso prato-raso, embora nunca tenha encontrado sinal algum de um segmento de reta em coisa nascida no Universo. Temo que algum titã se lembre de utilizar o disco plano para lhe prantar a janta e lá ficaríamos todos imersos em sopa Campbell.
Há já seis décadas era eu um puto enfezado, de orelhas de abano, com cabelo cortado à tijela, e frequentava a Escola Primária Santo António – sexo masculino, na Figueira da Foz. A Senhora Dona Gabriela era a professora, seca de carnes e de amores, azeda no trato, ensinava a preto e branco sob a égide de um crucifixo por cima do quadro. À direita da ardósia havia uma fotografia (essa a cores), onde nos contemplava um senhor de ar bonacheirão, vestido de marinheiro, com muitos dourados no chapéu e um sem fim de medalhas coloridas ao peito. Era o Senhor Contra-almirante Américo Deus Rodrigues Tomás, e Deus tinha-lhe dado por esposa uma senhora de seu nome Gertrudes.
Como o nome era desusado e arranhado para dizer, pensava eu que teria sido castigo de Deus por evocar no seu próprio nome o nome de Deus em vão, tal como me ensinava a catequista na igreja do outro lado da rua. Porque era o nosso Presidente da República contra o almirante é coisa que nunca consegui entender. Por baixo do marinheiro estava um minucioso mapa de Portugal, com províncias, capitais de distrito e outras cidades (que eram paisagem), rios e afluentes, linhas de comboio e estradas.
Por cima do presidente um mapa-mundo onde Portugal Continental, Insular e Ultramarino se destacava com a máxima de todo junto ser a maior nação do mundo. De certeza que o tal Yuri Gagarin deveria ter reparado em nós que tão imensos éramos. À esquerda do quadro cinzento um retrato, a carvão castanho, com o perfil adunco do Professor Doutor Oliveira Salazar que perorava coisas sábias e no corredor da escola até havia um quadrinho com um pensamento dele: “Se soubesses quanto custa mandar, preferias obedecer toda a vida”.
Eu obedecia no temor das reguadas solenes, pautadas e ferozes da D. Gabriela. Diga-se em abono da verdade que aquele pedaço de pau-preto, o temível “chá-da-preta”, deixou de tornar as mãos tão dormentes de dor, quando o chapéu-de-abas do senhor Ferreira passou a esperar a D. Gabriela no final das aulas. E isto aconteceu antes da TV a cores e das telenovelas em tons de rosa. Talvez fosse um amor cândido, azul e discreto, aquele, para condizer com a cor da terra vista do espaço.
Hoje, quanto à cor da Terra, tenho dúvidas. Pelo que vejo na televisão deixou de ser a preto-e-branco. Gosto bem mais dela assim. Colorida como lhe convém.