Opinião
A “Divina” Comédia da Vida
O protagonista é o ser humano vulgar - cada um de nós
Dante Alighieri, no século XIV, redigiu um poema épico sobre as múltiplas facetas da existência humana.
É poliédrico este tratado que nos coloca em constante perspectiva sobre a vida e a morte, céu e inferno, prazer e pecado, verdade e mentira.
Provavelmente, é a grande obra da civilização ocidental após o legado dos autores clássicos da antiga Grécia.
Alguém disse que é um terceiro testamento ou uma espécie de novo apocalipse, um livro de infindáveis revelações, uma consciência humana universal difundida pela voz do poeta.
Partir numa peregrinação em busca da “transcendência” é um processo de indagação que nos move a todos, numa lógica da auto-superação.
Ao longo do caminho, Dante vai-se cruzando com (des)conhecidos, figuras públicas ou do universo pessoal e debatem sobre os mais variados temas.
A odisseia é descritiva e contempla imensos detalhes visuais. Quando se encontra no inferno, Dante recebe a ajuda do poeta Virgílio. E nesta interacção, o leitor-actor prescruta-se, situando-se num lugar intemporal.
O presente: onde existe o terror da punição e a esperança da redenção, onde os homens são confrontados com a sua verdadeira natureza.
Virgílio, autor da Eneida e de quem Dante era um admirador profundo, é evocado no purgatório para que o auxilie a percorrer o doloroso caminho da perspectiva de cair no inferno.
E quando está no céu, quem realiza o seu acompanhamento é Beatriz, uma musa inspiradora que foi a paixão de Dante durante a adolescência.
Esta é o símbolo genuíno do amor, responsável por guiar o poeta para fora da selva.
O poema possui três personagens principais: Dante, o protagonista que personifica o Homem; Beatriz, que representa a fé e a esperança; e Virgílio, que podemos considerar o símbolo da razão.
A Divina Comédia é a história da conversão de um “pecado” ao caminho da concretude e da interioridade existencial que tem no amor o seu valor primordial.
Os versos sublinham a necessidade de seguir o caminho do bem e da ética. O protagonista é o ser humano vulgar - cada um de nós - que tem dúvidas, sonha tentado pelo mal e vacila nas ambivalências.
Dante ficou órfão muito cedo. A mãe faleceu quando era ainda criança e o pai quando tinha apenas dezoito anos.
Esta obra tem um começo trágico e um final apreciável, em contraponto com a tragédia.
O universo e a existência não são geométricos, como na obra de Dante.
A vida como metáfora de uma ‘selva’ e palco de extravios, sem destino definido, é muito bem revelada nesta obra que originou inúmeras interacções com a arte, de que é exemplo o magistral legado da banda Divine Comedy liderada por Neil Hannon, que celebra agora em digressão os seus 30 anos.
Regeneração, progresso, certeza do acaso, felicidade e remissão são palavras que se induzem das letras deste compositor, que evoca desde a origem, a mundividência que nos enforma.
Contemplar a existência perante um limbo representa a constatação da incompletude.
“Amor e alma gentil estão ligados como nos diz o sábio na canção. Só pode um sem o outro ser pensado se à alma racional faltar a razão”.