Opinião
A grande fogueira de queimar ideias
Noventa anos volvidos, em Portugal, o país dos “brandos costumes”, começou a atear-se a grande fogueira de queimar ideias
Basta-nos recuar noventa anos – com o que queremos recordar haver ainda testemunhas vivas desse período – para revistarmos episódios que anteciparam e alimentaram um dos mais tenebrosos períodos da nossa História contemporânea.
Entre 10 de maio e 21 de junho de 1933, foram queimados em várias praças públicas da Alemanha (na presença da polícia, bombeiros e entidades civis) calcula-se que mais de 20000 livros. O exorcismo tinha como princípio fazer desaparecer qualquer quaisquer obras que se desviassem do pensamento único nazi.
Claro que não foi o senhor Joseph Goebbels, ou o recém-eleito líder do Partido Nazi, Adolf Hitler, ou mesmo Hanns Johst que justificava a expurga como uma necessidade de purificação radical da literatura alemã de elementos estranhos que possam alienar a cultura alemã, que, de caixa de fósforos em punho, foram lá acender as fogueiras.
Atearam o incêndio inflamando os espíritos dos jovens que então compunham as chamadas “Fraternidades Estudantis” e a “Liga dos Estudantes Nacional-Socialistas”, que pouco mais tarde derivaram nas execráveis organizações conhecidas como SA e SS.
Os livros queimados faziam parte do espólio das Bibliotecas Públicas e entre mais destacados autores visados encontravam-se Thomas Mann, Stefan Zweig, Bertolt Brecht, Erich Maria Remarque, Joseph Roth, Sigmund Freud, Albert Einstein, Ricarda Huch e Heinrich Mann. Este último, em maio de 1934, consegue ainda inaugurar em Paris a Biblioteca Alemã da Liberdade – ou Biblioteca dos Livros Queimados.
Noventa anos volvidos, em Portugal, o país dos “brandos costumes”, começou a atear-se a grande fogueira de queimar ideias. Desta feita, ainda não nas praças públicas, mas nessa ágora global que são as redes sociais digitais – e bom seria que sempre assim nos referíssemos a elas, para que não se apague a memória dessoutras redes sociais que implicavam a presença e o olhar face-a-face do outro, e que por via disso não ignorássemos a empatia que sempre presidiu às relações humanas.
No brevíssimo intervalo de tempo de uma semana fomos confrontados com a iliberalidade de dois “polícias do pensamento”: um particular por, supostamente, considerar estar em causa a prática de crimes de ofensa à honra do Presidente da República e ultraje de símbolos nacionais e regionais, apresentou uma queixa-crime visando Ricardo Araújo Pereira; um bando de arruaceiros resolveu invadir o momento do lançamento de um livro para a Infância com impropérios machistas e homofóbicos. O livro ainda não o li pelo que dele não posso falar. Quando muito sei apenas que aborda questões de racismo, identidade de género, religião, bullying e ativismo. São temas presentes e que devem ser discutidos.
A pantomima sobre Marcelo Rebelo de Sousa contrariou um humor a que estávamos habituados e que se diferenciava pela inteligência a acutilância. Desta vez resvalou para a banalidade usada por contadores de anedotas boçais e grotescas.
Lamenta-se, mas o desagrado não se pode nunca sobrepor à liberdade de expressão e, essa sim, está comprometida se não extinguirmos desde já quaisquer pretensões de quem quer atear a grande fogueira de queimar ideias.