Opinião
A jeito
É talvez a mais teimosamente perigosa e duradoura lembrança de cinquenta anos de ditadura, onde a violência espreitava a cada esquina e encontro
Pôr-se. A jeito. É talvez a mais perniciosa expressão do nosso idioma, esperemos que intraduzível e impraticável noutras latitudes. Pôr-se a jeito. É talvez a mais teimosamente perigosa e duradoura lembrança de cinquenta anos de ditadura, onde a violência espreitava a cada esquina e encontro, por muito que agora se a negue, nas redes sociais e fóruns, na rua neo-fascista. É a vitimização do culpado. A culpabilização da vítima. É o passado a ser presente. É o futuro em risco.
Mas, o que nos pode “pôr a jeito”? A cultura? Ser ator da Barraca? A política? Termos ideias diferentes? A orientação sexual? Amarmos pessoas do mesmo sexo? Ser mulher? Não cozinhar, não bordar, não querer ter filhos, vestir uma saia curta? Ser homem? Ir às compras, parar na passadeira, tomar conta dos filhos? O desporto? Ser do Benfica, Porto, Sporting, União de Leiria, Estrela da Amadora? Ser estrangeiro? E não comer porco assado no espeto?
Serão estas coisas que, assim listadas, me parecem tão comuns, tão “da vida”, que rebentam com as temperaturas mentais da extrema direita; que fazem saltar as mãos para tabefes e calduços; que fazem com que jovens mandem explosivos para dentro de um carro cheio de outros jovens; que se matem mulheres ao desbarato sem crime, nem castigo; que se façam claques para os países em guerra; e que a televisão pague e estimule pessoas comentadoras para perpetuarem discurso de ódio, “inverdades”, e desinformação? Se estiver perto da verdade, então sim, estamos todos a jeito.
Aliás, viver-se é pôr-se a jeito: sair à rua, ver uma peça, beber uma cerveja, passear com os filhos, defendermos causas, termos opinião, termos clube, lermos um livro, votarmos em quem alguém não gosta, querer outro corpo, outro amante, outra carne, decotar o peito, interromper voluntariamente a gravidez, ir para outra terra em busca de oportunidade. Tenham só cuidado com quem vos observa. Eles andam aí. Eles mijam para os olhos.