Opinião
A realidade aprofunda a realidade
Basta folhear um jornal ou ouvir um noticiário para perceber que tudo o que nos chega aos olhos e aos ouvidos é muito menos do que a realidade inimitável é.
À Fundação Dom Belchior Carneiro
Há assuntos sobre os quais é mais complexo pensar ou escrever porque, por razões várias, pertencem a uma esfera onde até o diálogo connosco próprios é atravessado pelos grandes medos e pelos maiores tabus.
Por razões pessoais conheço bem lares de terceira idade.
Reflectir sobre essa circunstância pertence a esse lugar nebuloso que preferia não ter conhecido durante os meus dias.
Dias que a idade adulta já me mostrou, de forma aguda, que não estão sujeitos a qualquer preferência.
No actual contexto de pandemia escrever ou pensar sobre o que é um lar de terceira idade e o que é ter neles a viver pessoas que nos são próximas aprofunda, complexifica e aumenta até, o espectro de sentimentos que a este respeito julgara possíveis.
Basta folhear um jornal ou ouvir um noticiário para perceber que tudo o que nos chega aos olhos e aos ouvidos é muito menos do que a realidade inimitável é.
E não, deixar os nossos num lar de terceira idade não é como deixar uma criança numa creche, ou num campo de férias ou mesmo num colégio interno.
A opção por estes lugares é geralmente ditada pela incapacidade de dar resposta prática às demências, às doenças do foro neurológico, às limitações físicas que inviabilizam a independência e por essa parafernália de enfermidades que nos prolongam a vida, a que custo...
Os dias, os meus dias e acredito que os de muitos que como eu convivem com esta circunstância, passaram a reger-se por essa fina e quase indizível película que é a confiança e a transferência da dimensão do afecto (e de muitas outras...) para mãos alheias.
E face à incomunicabilidade com que as demências nos confrontam e que nos roubam a voz e a lucidez que nos poderia sossegar a dúvida e a culpa calada, só nos resta mesmo acreditar que essa película é translúcida e que nos permite ter uma aproximação fiel ao que realmente acontece ali.
Só que agora ao longe, de máscara e com visitas quase laboratoriais cuja distância ditada por vidros de separação nos retira ainda esse já remoto consolo que eram o do toque e da modulação afectuosa da voz.
Uma crónica não chega sintetizar toda esta avassaladora realidade que é o envelhecimento e de como o enquadrar condignamente no tempo em que vivemos. E a história que vivo é apesar de tudo uma história ditada por alguma sorte.
Posso convocar a palavra confiança e sei que não é opaco o vidro que me separa da realidade que vejo há alguns anos.
Na última visita laboratorial que fiz e esse lugar que me alberga o destinatário do afecto que acabara de superar mais um momento de instabilidade física, a auxiliar que o acompanha há mais tempo e a enfermeira que cuidou dele à cabeceira de modo a evitar todas as implicações de uma ida ao hospital atendendo a esta ameaça invisível que paira sobre nós desde Março, partilhavam comigo a alegria de mais esta vitória de toda a equipa de cuidados do lar. Uma alegria toldada, contudo, pelo cansaço e pelo peso diário de poderem ser o rastilho para esse outro cenário que nos chega diariamente pelas notícias.
Toldada também pela solidão de nós todos que entre vidros, máscaras e cheiro a álcool desinfectante, nos interrogamos sobre o sentido destes dias-proveta,
E a minha é apesar de tudo uma história com sorte.