Opinião
“Alegra-te com as pessoas”
O Duarte não tem medo das palavras nem de me confessar que se tem sentido sozinho
Não vivas sobre a terra como um estranho
Um turista no meio da natureza.
Habita o mundo como a casa do teu pai.
Crê na semente, na terra, no mar.
Mas acima de tudo crê nas pessoas.
Ama as nuvens,
as máquinas,
os livros,
mas acima de tudo ama o homem.
Sente a tristeza do ramo que murcha,
do astro que se extingue,
do animal ferido que agoniza,
mas acima de tudo
sente a tristeza e a dor das pessoas.
Alegra-te com todos os bens da terra,
com a sombra e a luz,
com as quatro estações.
Mas acima de tudo e a mãos cheias,
alegra-te com as pessoas.
Nâzim Hikmet, poeta turco
Abordou-me há uma semana à porta do trabalho. Resolvera dirigir-se pessoalmente à editora. Tenta cada vez mais evitar comunicações mediadas. Ronda os 20 anos e tem um olhar vivo e interrogativo. Recebo-o na sala de entrada depois de um dia automático a dar respostas a uma parafernália de mensagens sem ouvir uma única voz. Muito texto nenhum som.
O Duarte (nome fictício) não tem medo das palavras nem de me confessar que se tem sentido sozinho. A promessa das grandes amizades que ditara a opção de vir estudar Física para Lisboa, não passara disso mesmo. E chegou a reconsiderar a opção académica após o primeiro ano do curso.
Há uns meses, porém, fez dois amigos que, tal como ele, estranham a falta de rostos, de vozes e de presença física. Uma relação de amizade construída em torno de conversas sobre livros, os mesmos que lhes retiraram o peso da solidão dos primeiros meses em Lisboa.
Dessa alegria que partilham pelo prazer da descoberta e pelo espanto com a novidade, nasceu o desejo de criarem um pequeno clube de leitura, capaz de trazer outros à discussão de ideias que anima os debates do trio original. Assumiram isso como uma batalha, não tem sido fácil resgatar aos ecrãs outros membros para o clube.
O pedido que trazia era por isso muito directo - a cedência de livros que abordassem a ligação entre ciências exactas e humanidades, outros que aprofundassem o momento sociopolítico complexo que atravessamos, bons romances, livros escritos por génios como o físico Richard Feynman; e ainda ideias para temas de ciclos de conversas e contactos de autores que pudessem participar nas sessões.
Música para os ouvidos de quem divulga livros há mais de 30 anos e se interroga e fascina diariamente com esse momento mágico em que se cativa um novo leitor para o admirável mundo novo do conhecimento. Da conversa surgiu o esboço de uma parceria com o clube do Duarte, que divulgará sugestões da editora para um embrionário grupo de amigos e talvez, se o clube crescer, a possibilidade de um dia marcarmos uma sessão para contar como tudo isto nasceu.
Timidamente já a assomar a saída, surgiu um último pedido. Numa pequena folha de um caderno quadriculado, um orçamento manuscrito. Três despesas necessárias para ajudar a promover o clube - 10 cartazes a cores para divulgar os encontros pela universidade, envelopes para deixar convites nos outros departamentos e alguns pacotes de bolachas porque é mais fácil atrair membros “se houver alguma comida”. Nove euros de ajuda mensal que estão a tentar reunir também.
Aos deuses está reservado o destino do clube do Duarte, nas minhas mãos está a possibilidade de alimentar um sonho e a troca de uma despesa inútil por uma compra mensal de nove euros em pacotes de bolachas.