Opinião
Amnésia
Foi em Abril de 1996 que publiquei a primeira crónica; era suposto tratar-se de uma participação isolada, mas acabei por ser convidado para colaborar nesse jornal
Durante um período de vários meses, publiquei diariamente crónicas e contos; a exigência de escrever todos os dias um texto suficientemente bom para ser publicado transformou-se numa experiência tão entusiasmante quanto desafiante.
Seguiram-se outros jornais e novas aventuras; mais tarde, o primeiro livro.
Depois, outros livros; inúmeros projectos; colaborações com dezenas de criadores.
Uma editora minimalista. Principalmente: muitas partilhas, muitos afectos.
E aqui estou de novo num jornal, 25 abris depois. Já não escrevo as crónicas à mão em papel manteigueiro, nem as passo à máquina de escrever (porque foi assim que aprendi nos filmes da adolescência); já não me deslumbro com tanta facilidade; já não acredito no poder miraculoso da literatura; já não me levo tão a sério.
Mas, tal como antes, ainda sou composto por um terço de carne, um terço de melancolia e um terço de sonho.
E é do equilíbrio sempre instável entre melancolia e sonho que nasce a escrita; a necessidade, a vontade, a inevitabilidade, a arrogância, a insolência de escrever. 25 anos depois, ainda escrevo: porque posso, porque quero, porque preciso. Porque sim.
A mesma ingénua tentativa de fixar (e dissecar) pensamentos e emoções, dores e prazeres, dúvidas e angústias; a mesma inconsequente tentativa de contrariar a passagem do tempo, de atenuar a inevitabilidade do esquecimento.
O tempo passa e as dúvidas renovam-se; mas os temas permanecem.
Amnésia é um texto original de 1996, mais tarde publicado no livro Gastar Palavras; sendo sobre memória e esquecimento, talvez faça sentido recordá-lo agora.
Está lá internado no hospital um homem de trinta anos que teve um acidente de viação. Quando acordou, já no hospital, não recordava nada do acidente; na verdade, detectámos-lhe uma amnésia parcial: regredira dez anos e imaginava-se com vinte; tudo o que acontecera depois dessa data fora obliterado da sua mente. Quando a irmã o visitou pela primeira vez e constatou o seu estado, ficou confusa e não soube o que fazer. Por exemplo: foi incapaz de lhe dizer que o acidente fora provocado por uma distracção dele e que resultara na morte da sua mulher e da filha de ambos, um bebé com sete meses de vida. Ficou apenas a olhar para ele, a segurar-lhe a mão. Mas nas visitas seguintes, e obedecendo ao seu pedido, foi-lhe contando pedaços da vida que vivera, mas não conseguia recordar; contudo, foi-se desviando da verdade e inventando-lhe uma outra existência, banal e inofensiva. Uma existência sem casamento nem filho, que culminava num acidente sem consequências nem lamentos. Isto continuou durante uns dias. Hoje, a irmã veio perguntar-me se achava possível que ele estivesse a inventar a amnésia e a fingir que perdera a memória, numa tentativa infantil de fugir às consequências dos seus actos. Respondi-lhe que sim.