Opinião
Cada um é muita gente: O velho no muro
Talvez sim, talvez não. A verdade é que ele existe naquele lugar, naquele instante, levantando a mão
Na esquina, dizendo adeus. Lá está ele, velhote, vivendo enquanto partem os seus. Já não há ninguém da sua idade, da sua geração. Todos partem, ele não. E insiste em ficar, como quem não quer a coisa, como quem nem liga à vida, a observar. Sentado ao sol, num pequeno muro de pedra, vê as vidas dos outros a passar.
Ora de carro, ora a pé, muita gente lhe levanta a mão para o cumprimentar. E ele levanta a sua de volta, e volta a vida a passar. O que lhe vai na cabeça, nos olhos que controlam a estrada? Tanta coisa, talvez nada. A sua vida é estar ali, observando o que se passa à sua frente, dando um certo objectivo ao seu dia, dando-lhe que fazer. Se alguém lhe perguntar, ele dirá que está a viver.
Tanta gente que ele vê, que passa ali naquele lugar. Tanta vida que ele, ali, deve inventar. Aquela leva os filhos à escola, aquele vai almoçar, aquela vai às compras, aqueles vão trabalhar.
Esteja frio ou calor, ele não sai dali durante uns bons infinitos. Sempre que o vejo, ele está lá. Mas não passa lá os dias inteiros, obviamente. Tem a sua vida noutros lugares, em casa, na horta, no café, nos caminhos, na família. Eu é que olho para ele ali, naquela esquina, naquele lugar, e parece mobília.
Parece tudo aquilo que nós quisermos pensar. Um velho ali quieto, a olhar. Faz parte da paisagem, fará parte da miragem quando ele deixar de existir. É ele a sua imagem, é ela que nos diz adeus a sorrir.
Ora de boné, ora de gorro, o tempo não lhe mete medo. O que será que ele vê além do óbvio? Qual é o seu segredo? Será que conhece mesmo toda a gente? Será que está ali só por estar, indiferente? Talvez sim, talvez não. A verdade é que ele existe naquele lugar, naquele instante, levantando a mão.
Por vezes, faz só um aceno com a cabeça. E aquele gesto ameno faz com que tudo aconteça. Se eu o olho e lhe digo olá, todo o seu rosto brilha, e parece que ele sai da ilha onde está.
Todo ele sorri, todo ele é dono de si, da sua felicidade. Alguém o viu, alguém lhe disse olá ou disse adeus - é tão difícil distinguir - e ele respondeu do lado de lá, sempre a sorrir.