Opinião
“Certas coisas desaparecem quase sem se fazerem notar. E, por vezes, são coisas de fundamental importância" *
Em resposta à crescente cultura digital e à feroz pressão financeira do desempenho da profissão, Calasso, também ele escritor, desconstrói os modelos editoriais alicerçados no imediatismo e no lucro estrito
Li há já alguns anos em edição inglesa um pequeno livro intitulado The Art of Being a Publisher, de Roberto Calasso (1941-2021), o mítico editor de uma não menos mítica editora italiana, a Adelphi, que acaba de ser publicado entre nós pelas Edições 70.
Um encontro literário que teve um efeito transformador no entendimento que tenho da profissão e daquilo que pode ser uma editora e um editor ideais.
Este livro precioso reflecte o olhar de um grande editor sobre a edição, as transformações que esta actividade apaixonante tem sofrido e sobre esse inquestionável dom que distingue um editor de um produtor de livros.
Em resposta à crescente cultura digital e à feroz pressão financeira do desempenho da profissão, Calasso, também ele escritor, desconstrói os modelos editoriais alicerçados no imediatismo e no lucro estrito, em oposição a uma ideia de edição enquanto "género literário" radicada nessa figura de caçador de "livros únicos", isto é, alguém que escreve com os livros que edita, um livro em constante mutação percorrido por um fio condutor subtil - o do seu catálogo, que é, no limite, a sua autobiografia.
Um work in progress para o qual contribuem o texto de contra-capa, a escolha da capa, a selecção do papel e da fonte – afinal sucessivos volumes de uma obra única. Num livro cuja leitura é uma porta para as vastíssimas referências culturais de Calasso e nesse sentido um caminho que aponta para outras leituras, destaco as páginas dedicadas à escolha das capas.
É um diálogo empolgante entre literatura e história de arte, uma outra dimensão do trabalho de editor que tão estimulante pode ser para os leitores a quem todas estas ligações importam, quando se trata da busca de algo que seja "literatura sem qualificativos, que seja pensamento, (…) que seja ouro e não lata, que não tenha a inconsistência típica destes tempos".
Muito assente na sua experiência como editor e no trabalho de criação da célebre Biblioteca Adelphi, Calasso consagra ainda um dos capítulos a uma linhagem de grandes editores do século XX.
Nomes sem os quais a história da edição e dos países correspondentes teria sido outra, e que desempenharam um papel na formação de um critério e de um público leitor, separando o essencial do acessório - Giulio Einaudi (Einaudi); Roger Straus (Farrar, Straus & Giroux); Luciano Foà (Adelphi); Peter Suhrkamp (Suhrkamp) e Vladimir Dimitrijević (L’Âge d’Homme).
Consciente da reconfiguração inerente a um tempo rápido e tendente ao anonimato da figura do editor, Calasso encerra o livro com um texto agridoce escrito em 2009 - A Função Social do Editor.
Citá-lo é a melhor forma de fazer a apologia deste seu maravilhoso livro e do seu entendimento da profissão, do qual comungo: "Não quero suscitar a impressão de que, actualmente, o mundo da edição é uma causa perdida. Na realidade é apenas uma causa muito difícil, mas não mais difícil do que era em 1499, quando Aldo Manuzio, em Veneza, publicou um romance de um autor desconhecido (…) num formato inusual (…). E, no entanto, tratava-se do livro mais belo que alguma vez foi publicado: Hypnerotomachia Poliphili. Um dia, haverá sempre a possibilidade de alguém o tentar igualar."
*in CALASSO, Roberto, O Cunho do Editor, Edições 70, Lisboa, Junho de 2023.