Opinião

Cinema e TV | Isto é uma coisa a ver: Joan Is Awful

7 set 2023 08:30

Em apenas 50 minutos bem temperados de humor, Black Mirror alerta mais uma vez para os riscos da inteligência artificial sem controlo

Joan Is Awful é o primeiro episódio da sexta temporada de Black Mirror, a série britânica que explora os futuros que podem resultar de pequenas inovações tecnológicas ou de nova utilização da tecnologia já existente. O tom geral da série é distópico e sombrio, como muitas vezes nos parece ser o futuro, mas nalguns episódios, como acontece em Joan is Awful, a distopia é apresentada de forma leve e bem-humorada, sem deixar de nos obrigar a refletir nos desafios que uma realidade hipertecnológica e hipervirtual apresenta.

Escrito por Charlie Brooker, o episódio foi realizado pela canadiana Ally Pankiw e estreou a 15 de junho, contando com Annie Murphy e Salma Hayek a interpretarem diferentes versões de Joan e de si próprias.

Joan Is Awful começa com o acordar de Joan e acompanha todo o seu dia, mostrando a sua rotina, gostos, idiossincrasias, segredos e frustrações, algumas reveladas na sessão de terapia em que Joan confessa não se sentir a personagem principal da sua vida por lhe parecer que nada do que é tenha resultado de uma escolha ativa.

No final do dia, enquanto janta com o namorado Krish (Avi Nash), Joan procura alguma coisa para ver na plataforma Streamberry, uma clara paródia à Netflix, onde está a estrear a série dramática Joan Is Awful, protagonizada por Salma Hayek.

Rapidamente Joan percebe que está a rever na televisão todos os momentos do seu dia numa versão caricaturada de si, e o mesmo acontece a todos os que com ela interagiram. À medida que a série se torna um êxito, toda a vida pessoal e profissional de Joan, exposta publicamente, se vai desmoronando. Na tentativa de compreender o que lhe está a acontecer, Joan percebe que não tem armas legais para lutar contra a Streamberry, uma vez que os termos e condições, que aceitou sem ler, dão à plataforma o direito de dispor dos conteúdos da sua vida, a que tem acesso através dos omnipresentes aparelhos digitais que, invisivelmente, captam o nosso quotidiano, recolhem informação e conhecem os nossos gostos e preferências melhor do que nós próprios.

A inovação tecnológica do episódio, que permite distanciá-lo da nossa realidade concreta, é a existência de um supercomputador quântico, propriedade da Streamberry, que, partindo da informação recolhida junto dos milhares de utilizadores, cria infinitos multiversos a partir dos quais constrói séries ficcionais com base em imagens geradas informaticamente. Deste modo a ficção, partindo da realidade, fica isenta dela e de qualquer intervenção humana, pelo que a própria Selma Hayek, que interpreta Joan na série, não passa de uma personagem gerada por computador por ter assinado um contrato de cedência de direitos de imagem.

Em apenas 50 minutos bem temperados de humor, Black Mirror alerta mais uma vez para os riscos da inteligência artificial sem controlo, para os direitos que cedemos para continuarmos a usufruir dos benefícios da tecnologia, para a vigilância a que estamos continuamente sujeitos, para o efeito anestesiante do entretenimento, para a manipulação das emoções feita pelos meios de comunicação, para a nossa necessidade de ver o pior dos outros e para a indefinição crescente daquilo a que chamamos realidade.

No entanto, Joan Is Awful consegue a proeza de, sendo uma série que parodia séries, numa plataforma que se deixa parodiar a si própria, com atrizes que se apresentam como caricaturas de si mesmas e numa realidade ficcional que se apresenta como possibilidade real, encerrar o episódio de forma otimista a mostrar-nos que, mesmo num mundo onde tudo parece virtual, podemos reencontrar aquilo que é verdadeiramente real e ser a personagem principal da nossa história.