Opinião
Cinema e TV | Isto é uma coisa a ver: Saltburn
Tal como Promising Young Woman, o primeiro filme de Emerald Fennell lançado em 2020, é acerca de privilégios e obsessão
Saltburn é o segundo filme realizado por Emerald Fennell e é protagonizado por Barry Keoghan, Jacob Elordi (um dos protagonistas da série Euphoria) e Rosamund Pike (a atriz principal de Gone Girl e I Care a Lot). Além deste elenco promissor (a que se juntam Richard E. Grant, Alison Oliver e Carey Mulligan, a protagonista de Promising Young Woman), o filme cruza crime com erotismo, horror e comédia negra, tudo num cenário fantástico e num ambiente que junta desejo e opulência, ingredientes que lhe garantiram imediatamente polémica nas redes e sucesso nas bilheteiras. Em Portugal estreou no dia 22 de dezembro sem ter passado pelas salas de cinema e está disponível na plataforma da Amazon Prime Video.
Saltburn, tal como Promising Young Woman, o primeiro filme de Emerald Fennell lançado em 2020, é acerca de privilégios e obsessão.
Em Promising Young Woman deparamo-nos com uma jovem que tenta vingar a morte da sua melhor amiga após esta ter sido vítima de violação e posterior suicídio. É uma história acerca da violência que os homens podem exercer sobre as mulheres, muitas vezes disfarçada de diversão e facilmente perdoada por todos, exceto por quem sofre com ela, uma história que explora simultaneamente os efeitos do privilégio de classe e do patriarcado, mostrando como estes se podem aliar para garantir impunidade, enquanto do lado feminino se mostra como se pode ser vítima do crime e, cumulativamente, da própria justiça (ou falta dela).
Saltburn mantém o tom de thriller psicológico e os temas da obsessão e da desigualdade social presentes em Promising Young Woman, mas leva-os mais longe (ou longe demais), permitindo ao espetador encontrar ecos vagos de filmes tão diferentes como Marie Antoinette (os cenários suptuosos), Shinning (o labirinto do jardim), Psycho (as cenas da banheira), The Talented Mr. Ripley (a personalidade de Oliver), Eyes Wide Shut (o erotismo), ou de séries como You (o voyeurismo e a psicopatia) e Brideshead Revisited (o ambiente social), entre muitos outros. Este medley cinematográfico resulta numa identidade visual própria, uma espécie de barroco pop em que planos, iluminação, cor e música se conjugam para criar a sensação de que o filme decorre simultaneamente num espaço e num tempo que lhe são próprios e exclusivos.
É nesse espaço-tempo de Saltburn que Oliver Quick (Barry Keoghan), um jovem estudante bolseiro de Oxford, se deixa fascinar pela família e pelo estilo de vida aristocrático dos Catton, donos da grandiosa mansão. Narrado pelo próprio Oliver 16 anos depois, o filme vai desfiando os acontecimentos ocorridos no verão de 2006 quando Oliver se junta a Felix, Elspeth, James e Venetia, Pamela e Farleigh em Saltburn. O clima de festa e descontração que se vive antes da chegada de Oliver vai dando lugar a uma teia de acontecimentos que culmina na tragédia que ocorre durante a festa de aniversário de Oliver, e que apenas se compreende cabalmente no final do filme, quando Oliver termina a narrativa.
Apesar de o filme cumprir o desejo expresso pela realizadora de perturbar o espetador provocando emoções semelhantes à sensação de estar num quarto escuro cheio de estranhos sem saber no que se pode tocar, as opiniões sobre ele não são consensuais. Talvez isso se deva em grande parte ao facto de as cenas eróticas se aproximarem demasiado do grotesco, ou à dificuldade em compreender o poder de atração de Barry Keoghan no papel de Oliver, ou ainda à excessiva evidência de certas ligações que, sendo simbólicas, se pretendem mais subtis (como é o caso da escolha do lettering do genérico, da entrada de Oliver em Oxford ao som da música de Handel usada na coroação do Rei Carlos, da cena de sexo na campa ao som do hino Lord of the Hopefulness, das asas angelicais e chifres demoníacos usados por Felix e Oliver na festa, da estátua do Minotauro no centro do labirinto ou do nu integral na dança final de Oliver, entre tantos outros exemplos). Esta falta de contenção, também patente na construção das personagens e na escolha de Barry Keoghan (que parece demasiado velho para o papel de jovem universitário deslumbrado) abala o equilíbrio do filme e faz com que o incómodo que Fennell pretende provocar no espetador se aproxime perigosamente da repulsa. Ainda assim, enquanto exercício formal e tratado acerca da inveja e crueldade humanas, Saltburn poderá ser um filme a ver. Preferencialmente se tiver mais de 18 anos e não tiver especial sensibilidade a cenas eventualmente chocantes.