Opinião

Cinema e TV | Isto é uma coisa a ver: Triângulo de Tristeza (Triangle of Sadness)

12 jul 2024 08:50

Uma crítica social e política, estruturada numa espécie de tríptico que explora diferentes temas, gerando um desconforto crescente no espectador

Triângulo de Tristeza é a designação dada pelos cirurgiões plásticos à ruga que se forma entre as sobrancelhas e que pode ser corrigida em minutos com uma sessão de botox. É logo no título que o filme de Ruben Östlund, vencedor da Palma D’Ouro de 2022 e candidato aos óscares nesse mesmo ano, se assume como uma crítica social e política, estruturada numa espécie de tríptico que explora diferentes temas, gerando um desconforto crescente no espetador.

O cinismo e a ironia de Ruben Östlund estão presentes logo na escolha do lema da passagem de modelos que dá início ao filme, numa clara referência ao Triunfo dos Porcos de George Orwell: somos todos iguais. No entanto, como todo o filme se dedica a provar, uns são sempre mais iguais do que outros.

A primeira parte centra-se em Carl (Harris Dickinson) e Yaya (Charlbi Dean, falecida pouco tempo depois da estreia do filme), um casal de modelos e influencers, onde é abordada a primeira desigualdade, neste caso, de género. No entanto, a posição tradicional é invertida: em Triângulo de Tristeza é Carl que é rejeitado nos castings, é Carl que recebe menos do que Yaya enquanto modelo, é Carl que paga as contas, é Carl que quer ter papéis iguais na relação, e é Carl que quer amor a sério, enquanto Yaya assume ser manipuladora, querer manter os seus privilégios de mulher, pretender segurança e aumentar seguidores, e não ter qualquer interesse numa relação assente em amizade ou amor.

O segundo painel deste Triângulo de Tristeza intitula-se O Iate, e foi filmado no antigo barco de Aristóteles Onassis, o que não deixa de ser profundamente irónico dado que a desigualdade explorada é a económica.

Trata-se de um cruzeiro de luxo de 250 milhões de dólares onde Carl e Yaya são passageiros porque Yaya ganhou a viagem como influencer. Alguns dos outros passageiros são Dimitri (Zlatko Buric), um milionário russo que fez fortuna com fertilizantes e as suas duas esposas; uma senhora (Iris Berben) que teve um AVC e que só diz In den wolken (que significa: nas nuvens); e os Winston, um casal de velhinhos simpáticos que fez fortuna a vender minas terrestres e granadas.

Para manter os passageiros satisfeitos, há toda uma tripulação chefiada por Paula (Vicki Berlin), mas mesmo no staff há diferença entre white colar e blue colar, estratificado em fardas, decks e etnias.

A comandar o navio está Woody Harrelson no papel de Thomas Smith, um idealista alcoólico que passa todo o tempo fechado no quarto e sai apenas na noite do jantar do comandante.

No dia do jantar do comandante, uma das passageiras decide que todos deverão ter o privilégio que os ricos têm de sentir o prazer de viver no momento e, por isso, obriga a que todos os membros do staff deem um mergulho no mar, capricho filantrópico prontamente atendido, com os custos a serem suportados pela própria tripulação.

A calma da viagem é interrompida durante o jantar. Uma tempestade abala o equilíbrio do barco e dos estômagos delicados dos viajantes, que se debatem com a condição humana a que o corpo os reduz, entre vómito, diarreia e o pânico de que o navio afunde, navio que, ele mesmo, também parece revoltar-se contra os seus passageiros numa espécie de explosão escatológica, enquanto o marxista americano Smith e o capitalista russo Dimitri bebem e discutem política, citando Marx e Ronald Reagan.

Triângulo de Tristeza assume-se, neste ponto, como um manifesto contra o excesso, contra a riqueza, contra o individualismo egoísta, contra o governo americano e contra a indústria militar. E é este manifesto, pela voz do comandante, que encerra o segundo painel do filme e dá início ao terceiro, quando uma granada de mão, construída na fábrica do casal de velhinhos simpáticos, aterra no navio.

O tríptico da crítica social encerra com a chegada de um conjunto de sobreviventes do ataque ao iate a uma ilha aparentemente deserta. Nesta terceira parte, chamada A Ilha, ao contrário do que acontecia no iate, a estrutura de poder não assenta nas contas bancárias, nem na beleza, nem na quantidade de seguidores, mas nas competências reais que permitem a sobrevivência, competências que naturalmente estão mais desenvolvidas nos trabalhadores manuais. E é Abigail (Dolly De Leon), uma filipina responsável pela limpeza das retretes do iate, que mostra ser a única a ter capacidade para pescar, fazer fogo e cozinhar. No entanto, também nesta parte se coloca o problema da distribuição dos recursos e do poder a eles associado: quanto merece quem faz tudo? E quem tem o poder quando a estrutura social convencional deixa de existir? Quais os limites do exercício desse poder? Quais os privilégios permitidos? A resposta de Ruben Östlund é tudo menos otimista, parecendo mostrar que se o 1% de ricos é desprezível, os restantes 99% também não são de confiança. Para Östlund não parece haver salvação moral para a espécie. E, por isso mesmo, a cena final do filme é a cereja no topo do bolo do cinismo que perpassa todo o filme.