Opinião
Cinema | As cinzas às cinzas
Sem nenhuma cena de violência (fisicamente) explícita, este poderá perfeitamente ser um dos mais duros e traumatizantes filmes sobre o Holocausto
“Os monstros existem, mas são poucos para se considerarem verdadeiramente perigosos. Mais perigosos são os homens comuns, os funcionários prontos a acreditar e agir, sem colocarem questões” - Primo Levi
Quando, a 27 de janeiro de 1945, o Exército Vermelho libertou os campos de concentração de Auschwitz, 6 milhões de judeus (e outros tantos soviéticos) terão sido assassinados pela máquina de guerra nazi. Destes 6 milhões, metade terá morrido em campos de extermínio como o de Auschwitz-Birkenau, criado com o propósito de rápida e eficientemente eliminar essas pessoas e os seus corpos. Apenas nestes campos, perto de Oświęcim, na Polónia ocupada, terão sido mortas 1 milhão e 100 mil pessoas, das quais 960 mil seriam judeus.
[Antes de avançar com a crítica de cinema, é importante fazer, neste momento, um aparte e contextualizar os números, sob risco de perder, para a estatística, a dimensão humana: 1 milhão de pessoas foi sensivelmente o número de votantes no Chega, nas recentes eleições legislativas, em Portugal, o correspondente aos mesmos 18% que o Partido Nazi obteve nas eleições de 1930, na Alemanha, um par de anos antes de assumir a maioria do Reichstag e eleger Hitler como chanceler. Quer dizer que atualmente e num determinado momento, numa sala cheia de gente, em qualquer café, restaurante, fábrica, hospital ou… teatro, pelo menos 1 em cada 6, talvez 1 em cada 5 dos presentes simpatizam com ideias extremistas. E agora o desporto... Perdão, o cinema.]
Rudolf Höss foi, entre maio de 1940 e janeiro de 1945 (excetuando meia dúzia de meses) o comandante dos campos de concentração, trabalho e extermínio que compunham o complexo de Auschwitz. Escolhido por Himmler para implementar a “Solução Final” de Hitler, que exterminaria os judeus da Europa, viveu com a sua mulher Hedwig e os seus cinco filhos numa villa, literalmente paredes meias com o campo de extermínio. Um jardim bem cuidado, com piscina, uma horta e uma estufa, num cenário aparentemente idílico, alheio ao sofrimento, dor e genocídio a acontecer do outro lado do muro. É este o ponto de partida de A Zona de Interesse (The Zone of Interest, 2023), do britânico Jonathan Glazer, livremente inspirado no livro homónimo de Martin Amis.
Sem nenhuma cena de violência (fisicamente) explícita, este poderá perfeitamente ser um dos mais duros e traumatizantes filmes sobre o Holocausto. Pertence à categoria de películas que não nos abandonam depois de sairmos do cinema e que, regressam uma e outra vez para nos assombrar e fazer refletir. Destaque para a atriz Sandra Hüller, que interpreta Hedwig Höss e que tinha recentemente protagonizado outro fantástico filme: Anatomia de uma Queda, que também já teve comentário nesta coluna. Os pequenos detalhes de fotografia, as opções de realização sem falha e uma sonoplastia de outro mundo, fazem com que este filme perturbador, mas incontornável, seja já um dos melhores do ano.