Opinião
Cinema | C’est pas la chute, c’est l’atterrisage
Um dos melhores do ano, se não apenas pela enorme maturidade (técnica e psicológica) do trabalho da autora, mas também pela interpretação gigantesca dos atores
Daniel tem 11 anos e é praticamente cego. Anos antes, na sequência de um acidente com um carro, ficou com a visão fortemente condicionada. Vive com os pais num chalet, algures nos arredores de Grenoble, no gelado sopé dos alpes franceses. A sua mãe, Sandra, é uma bem-sucedida escritora que recebe, nesse dia, a visita de uma estudante que a pretende entrevistar. Recorrendo ao inglês para fugir à necessidade de se expressar num francês pouco sólido, a escritora alemã beberica de um copo de vinho, numa atitude suspeitosamente sedutora para com a entrevistadora. Fora de cena, intui-se a presença de Samuel, o pai de Daniel, que estará no piso superior, ocupado com obras de restauro e recuperação. Subitamente, a casa é abalada por música, reproduzida num volume a roçar o ensurdecedor, que Samuel (numa atitude provocatória?) decide reproduzir. Acaba por se impor um abrupto final à entrevista, com a estudante a abandonar a casa e Daniel, que apesar de invisual, se movimenta com autonomia, muito graças a Snoop, o border collie que o acompanha para todo o lado, faz o mesmo breves instantes depois. A tensão e desconforto são evidentes.
Quando regressa do passeio com o cão, Daniel encontra no chão, junto à casa, o corpo do pai, com a cabeça ensanguentada – o vermelho do sangue a manchar a alvura da neve, no que se prefigura como uma queda do último piso para o solo. Daniel chama a mãe, que se apressa a ligar para o serviço de emergência, mas é imediata a dúvida que assalta o espectador: terá a queda de Samuel sido acidental?
Esta é a premissa de Anatomie d’Une Chute (2023) o filme que valeu à realizadora Justine Trier, a Palma de Ouro, na edição deste ano do Festival de Cannes.
O que se adivinha como um thriller policial, com uma boa parte da ação passada no tribunal (onde Sandra tem de se defender da acusação de homicídio), acaba por se revelar um filme denso e perturbador. Não porque exista uma reviravolta surpreendente no argumento – continua a ser pouco claro o que realmente terá acontecido após os 152 minutos de filme – mas porque o que é efetivamente exposto no tribunal é a dinâmica, muitas vezes negra e conflituosa da vida do casal (dos casais?) e um mergulho em apneia no âmago da condição humana.
Anatomie d’Une Chute é indiscutivelmente um dos melhores do ano, se não apenas pela enorme maturidade (técnica e psicológica) do trabalho da autora, mas também pela interpretação gigantesca dos atores, que emprestam uma verosimilhança assustadora à complexidade das personagens.