Opinião

Cinema | Como um fósforo no Bósforo

13 mai 2022 13:07

Les Enfants Terribles é uma história de conflitos entre gerações e da infindável luta entre passado e presente, entre conservadorismo e progressismo

Ahmet tinha treze anos quando, contra a vontade dos pais, saiu de casa para estudar. Para trás, na humilde aldeia turca de Keskincik, próxima da fronteira com a Síria, deixou os seus irmãos: Mahmut, Cemal e a pequena Zeynap, que cresceram no seio de uma família conservadora, muçulmana, integrada numa discreta e tradicional comunidade rural.

Em Antáquia (que se ergue agora no território que já foi Antióquia, capital da província romana da Síria, e onde, segundo consta, o apóstolo Paulo pregou) Ahmet formou-se em Engenharia Civil. Durante os três anos seguintes trabalhou no Iraque e no Afeganistão, durante a guerra, até que, durante uma viagem à Roménia, regista um pequeno filme que o faz decidir tornar-se realizador de cinema. Parte para Paris, onde se radica e, após dois anos, consegue finalmente financiamento para o seu projeto.

Entretanto, em Keskincik, a vida prossegue cingida pelas amarras do patriarcado, da religião, da família e da tradição. Mahmut, recém-casado com a jovem Nezahat, não se revê no casamento combinado que lhe foi imposto e acaba por ir trabalhar para o Kuwait, onde consegue concluir o ensino secundário e encontrar argumentos para apenas regressar a casa muito esporadicamente, evitando, assim, ter de lidar com uma situação na qual não se sente feliz. Agora, após dois anos de casamento, pretende divorciar-se, apesar das implicações familiares e sociais que esta decisão acarreta, inclusive para Nezahat.

Zeynap também não está feliz. Trabalha doze horas por dia numa fábrica e, ainda assim, tenta estudar à noite. O seu grande objetivo é prosseguir com a sua formação, mas vê-se confrontada com os pesados escolhos que lhe são colocados no caminho, especialmente por ser mulher e “em idade de casar”.

Les Enfants Terribles, premiado filme de Ahmet Necdet Çupur, surge precisamente quando Zeynap contacta o irmão e lhe descreve a situação que Mahmut e ela própria estão a experienciar. Ahmet recorda como, vinte anos antes, também ele saíra de casa em conflito com os pais e em ruptura com o modo de vida tradicional. Decide regressar, armado com uma câmara e a intenção de documentar o caminho que os irmãos escolherão seguir.

Vinte anos de ausência permitem criar um distanciamento emocional necessário à realização profissional deste filme que, paradoxalmente, vive de um intimismo na captura dos momentos e das emoções que apenas um membro da família conseguiria conseguir.

Les Enfants Terribles é uma história de conflitos entre gerações e da infindável luta entre passado e presente, entre conservadorismo e progressismo. Estas são as tintas que Ahmet Çupur utiliza para pintar um quadro de família. A própria tela está carregada de paradoxos e contradições, que são os da Turquia dos dias de hoje. Eternamente entre o Ocidente e o Oriente, entre o Islão e o Cristianismo, entre a tradição e a modernidade.