Opinião
Cinema | ДОНБАСС
Donbass não é um filme fácil ou que se encaixe sequer no epíteto de comédia negra que o trailer comercial embandeira. São 122 minutos sombrios e violentos
“O acaso não escolhe, propõe”, dizia Saramago, pela boca de um outro José, no seu Todos os Nomes. O acaso tem destas coisas: é capaz de engendrar fios condutores onde antes apenas existia uma amálgama de informação avulsa e colocar tudo numa ordem tão surpreendente quanto interessante.
Passo a explicar. Encontrar o nome de Sergei Loznitsa entre os autores presentes no International Documentary Film Festival of Amsterdam (IDFA, agendado para o próximo mês de novembro) não é inopinado – especialmente se comparado com o facto de aí apresentar dois filmes (The Natural History of Destruction e The Kiev Trial). O percurso de Loznitsa como cineasta é marcado de forma óbvia pela herança cultural e histórica de um ucraniano nascido na Bielorrússia (as fronteiras da então URSS, em 1964, assim o facilitavam) e que trabalhou como cientista no Instituto de Cibernética de Kiev até à queda da União Soviética, antes de enveredar pelo cinema. Ora, enquanto me inteirava da participação de Loznitsa na edição deste ano do IDFA, dei de caras – por um mero acaso, lá está – com um filme ficcional relativamente recente (2018), do mesmo autor, que simplesmente me tinha escapado ao radar. Donbass, ou, Донбасс, no original, apresenta-se como uma incursão pela região no leste da Ucrânia, onde “à guerra se chama paz, a propaganda é proferida como verdade e o ódio é declarado como amor”. Num momento em que comentadores e especialistas se acotovelam para opinar sobre a invasão russa da Ucrânia e o seu enquadramento histórico, este filme que um ucraniano constrói em torno do conflito separatista, militarmente apoiado pelos russos, instalado no Leste do seu país desde 2014, é simplesmente uma valiosa pérola impossível de desprezar.
Antes de me referir ao filme em si, deixo uma nota e recomendação: Donbass (vencedor do Prémio de Melhor Realização – Un Certain Regard, de Cannes, em 2018) será exibido no Teatro Miguel Franco, em Leiria, no próximo dia 30 de novembro, e, desta forma, fecho o círculo de coincidências do acaso.
Donbass não é um filme fácil ou que se encaixe sequer no epíteto de comédia negra que o trailer comercial embandeira. São 122 minutos sombrios e violentos, mais próximos do registo documental do que se pretenderia, ainda que neste campo, a responsabilidade não esteja (apenas) do lado da realização de Loznitsa.
A corrupção, a desinformação, a manipulação e condicionamento das massas, a prepotência do poder são os protagonistas de verosímeis episódios quotidianos neste mundo do Leste da Ucrânia. Inverosímil é que o autor deste mesmo filme tenha sido expulso da Academia de Cinema Ucraniana, já este ano, por se recusar a compactuar com a aplicação cega de sanções aos seus colegas russos (anti-Putin), negando-lhes liberdade de expressão.
Sobram-me caracteres ou falta-me espaço, mas deixo aqui link para a sua carta aberta.