Opinião

Cinema | O outro lado do cowboy

11 out 2021 09:43

A afirmação de algo em contra-ciclo não é uma ideia estranha ao cinema de Eastwood, que nos vem apresentando personagens singulares

Numa entrevista, em 1959, para os Cahiers du Cinéma, Fritz Lang conta uma pequena anedota que teve com o seu dialoguista sobre o uso de uma determinada expressão. O realizador alemão radicado nos E.U.A. queria que o Maharadja, em Tigre de Bengala, dissesse: “Se me der a sua palavra de honra, deixo-o livre no meu palácio”. Tendo o dialoguista respondido: “Mas, ouve, toda a gente vai rir. O que é que vale atualmente uma palavra de honra?”. A que vem isto a propósito? Precisamente por causa do novo filme de Clint Eastwood, Cry Macho - A Redenção (2021).

Depois dos anos de glória, toda a estrela mais tarde ou mais cedo perde o seu brilho, e Mike Milo, antiga vedeta do rodeio que se dedica à criação de cavalos, não foi excepção, vencido pelos comprimidos (consequência de uma queda), álcool e perda da mulher e filhos. Passado um ano desde o despedimento de Mike, o seu ex-patrão Howard Polk (Dwight Yoakam) decide ir ter com ele para o convencer a tirar o seu filho Rafael “Rafo” Polk do México, uma vez que está impedido de pisar terras mexicanas. Mike tenta de várias formas dissuadi-lo, mas, a dada altura, Polk diz o seguinte: “Acho que me deves alguma coisa e deste-me a tua palavra e isso costumava significar alguma coisa”. Contrariamente à opinião do dialoguista de Fritz Lang, sendo também uma espécie de reflexo dos tempos modernos em que facilmente se rompem compromissos, Mike Milo, como cowboy exemplar que é, honra a sua palavra, independentemente da idade que tenha, e parte para o sul em busca do adolescente que rapidamente ficamos a saber que está envolvido em lutas de galos. É evidente que o filme está embebido no tema da viagem, um dos grandes temas do western, mas ela será feita à sua maneira e sem pressas.

A afirmação de algo em contra-ciclo não é uma ideia estranha ao cinema de Eastwood, que nos vem apresentando personagens singulares, como é, por exemplo, o caso de Earl, em Correio de Droga (2018). E o mais recente Eastwood está nos antípodas do herói mítico que ajudou a forjar, mas caminhar ainda que num passo lento, entregar-se a tarefas rotineiras (cozinhar, dormitar, dançar) e cuidar dos animais é tudo o que precisa de fazer, porque o cinema tornou-se a sua vida e esta não é só feita de ações heróicas. Por muito difícil que seja fazer vista grossa à representação forçada e desajeitada de Eduardo Minett como Rafo, à tentativa insólita e primária de Leta (Fernanda Urrejola), mãe do rapaz, em seduzir Mike; a verdade é que basta a força dos dois gestos de cowboy para esquecer tudo o resto, pois é no esconder o semblante com o chapéu enquanto narra o acontecimento trágico da sua vida e no virar costas na despedida que se guardam o mistério de uma conduta em vias de extinção.

Se para alguns a desconstrução do machismo no filme não passa de duas ou três frases clichês (“Ser macho é sobrevalorizado”), que teriam tido bem mais efeito há umas décadas, não nos podemos esquecer que, numa América que se revoltou contra o anúncio The Best Man Can Be da Gillete, em 2019, contra a “masculinidade tóxica”, Cry Macho pode ser suficientemente desafiador.