Opinião
Cinema | Um evento histórico como nunca antes visto
Mais do que um filme sobre os efeitos que o culto de personalidade pode ter sobre as pessoas, Funeral de Estado é um filme que expressa as ambiguidades de um povo, que, de repente, se vê sem o seu líder
Funeral de Estado (2019), do realizador Sergei Loznitsa, é um documentário — criado a partir de imagens de arquivo — que retrata a cerimónia fúnebre de um dos homens mais poderosos do pós-guerra: Josef Stalin. As imagens de que se serviu Loznitsa tinham como objectivo integrar um documentário propagandístico intitulado The Great Farewell (1953), que só foi exibido uma vez.
De forma semelhante ao seu anterior documentário, The Trial (2018), a intervenção do realizador, à parte da escolha de 40 horas de material de arquivo, é mínima. Alguns dirão que isso é já transformar a “realidade objectiva”. Todavia, certas decisões precisam de ser tomadas para se poder passar o evento fúnebre numa duração comercial.
A filosofia subjacente à escolha das imagens é a de dar destaque aos rostos do povo por oposição ao do chefe de estado, que apenas vemos em grande plano quando é aberto o caixão. É através das suas reações que tentaremos descodificar o que significava Stalin. Alguns rostos deixam escapar um tímido sorriso, outros fixam a câmara num gesto de curiosidade. Há ainda os que choram comovidos. Posto isto, não há comentários de especialistas nem uma qualquer narração a explicar o evento. O espectador é deixado à sua mercê para interpretar a cerimónia de enterro, que muito se assemelha a uma transmissão em directo, tal a abundãncia de planos, a continuidade das acções e a edição fluída de Sergei Loznitsa.
É necessário salientar o trabalho de sound design de Vladimir Golovnitskiy, cuja mistura do som de arquivo com a gravação de sons originais foi fundamental para dar uma nova vida e maior proximidade às imagens. Por mais belas que estas sejam (pois foram filmadas com a película Afgcolor, que dá destaque aos verdes e vermelhos dos arranjos florais assim como ao carmesim das bandeiras, fitas e estofo do caixão), até os mais entusiastas pela história da URSS não deixarão de se sentir fatigados ao final de duas horas de filme, mas creio que essa reação é parte integrante da experiência.
O cansaço acumulado é como que o condão para desmontar a monumentalidade e teatralidade do funeral. A paciência vai-se esgotando e a disponibilidade para ouvir os discursos enfatuados, fantasiosos, cheios de pathos não é mais a mesma. É por isso que quando chega a vez de Khrushchev, Malenkov, Molotov e Beria discursarem, não é possível ter qualquer reação.
A artificialidade será mais óbvia quanto mais familiaridade o espectador tiver sobre o governo com mão de ferro de Stalin. E para quem for leigo neste tipo de matéria? A ambiguidade da recepção de Funeral de Estado está no facto de o contexto estar perdido. E as muitas pessoas que vemos chorar durante a cerimónia são como que a demonstração cabal da “grande perda para humanidade”, como é dito num dos discursos.
No entanto, no cartão final são descritas as atrocidades cometidas durante o governo de Stalin e essas palavras marcantes quebram o feitiço do retrato hipnotizante até aí exibido.
Mais do que um filme sobre os efeitos que o culto de personalidade pode ter sobre as pessoas, Funeral de Estado é um filme que expressa as ambiguidades de um povo, que, de repente, se vê sem o seu líder.