Opinião

Conversas que se ouvem por acaso

20 mai 2021 15:00

É como sempre te digo, as pessoas apenas querem que alguém lhes repita em voz alta aquilo que já pensaram antes

Bom dia, meu neto de estimação. Estás bom? Já vendeste muitos bifes? Deixa-me adivinhar. Nenhum.

E nem preciso de te ler a mão para saber isso. E por falar em mãos. Ontem apareceu uma cliente nova que parecia parva.

Sabes o que queria que lhe lesse? O carro. Queria que lhe dissesse se valia a pena investir no arranjo do carro. Há por aí gente muito doida, não há? Mas ainda bem, é bom para o negócio.

Fiz-lhe a leitura da mão e disse aquilo que ela queria ouvir: que arranjasse o carro.

É como sempre te digo, as pessoas apenas querem que alguém lhes repita em voz alta aquilo que já pensaram antes.

Não notas isso? Querem que os outros sejam ecos. E pronto, não me importo nada de ser eco. Posso ser eco, posso ser espelho, posso ser o que quiserem.

Só me arrependo de não me ter dedicado a isto antes, já viste a tristeza que é ter perdido toda a vida a carimbar folhas na porcaria daquela repartição? Tinha-me posto a ler mãos mais cedo e tudo teria corrido melhor.

Fazia as pessoas felizes e pelo caminho também eu ficava feliz, que se ganha bom dinheiro a dizer às pessoas aquilo que elas querem ouvir.

Devias largar isto e ir trabalhar comigo. És um bom ouvinte, e isso é o mais importante. Devias experimentar. Ou queres passar toda a vida a vender costeletas e presuntos?

Já ninguém liga a essas coisas, estás parado no tempo. Bom, vender é um exagero, que nunca se vê aqui ninguém. Devias vender coisas vegetarianas, que te safavas melhor. Presunto vegetariano.

E não adianta estares com desculpas sobre a honestidade e essas coisas. Quando dizes às pessoas aquilo que elas querem ouvir não as estás a enganar.

Para mim, ler mãos é parecido àquilo que os psicólogos fazem. É verdade que não tenho estudos, mas levo muito mais barato. E as pessoas ficam bem servidas com os meus conselhos. Se assim não fosse, não regressavam. Certo? Mas pronto.

Hoje aconselhei uma doida a arranjar o carro, em vez de comprar um novo. Não se pode dizer que seja coisa de muita responsabilidade.

Tenho saudades de quando aparecia gente com vontade de se matar. Era fácil perceber aquilo que queriam ouvir: para não se matarem.

Acho que salvei meia dúzia de pessoas. Fui eu que as salvei, mas claro que podia ter sido outra pessoa qualquer. Poderias ter sido tu. Se calhar já salvaste pessoas aqui. Basta ouvi-las, não é? E tu ouves.

Mas agora já não aparece gente que se queira matar. Devem ir aos psicólogos. A gente que vem quer saber o futuro do carro.

Agora só falta aparecer quem queira saber o futuro do cãozinho de estimação. Ainda me vou tornar leitora de patas. Eu leio patas de cães e tu vendes tofu. Iremos longe, não achas?

Mas atende aqui este senhor, que chegou primeiro e não é todos os dias que tens um freguês a sério.