Opinião

Dicionário improvisado XLII

24 dez 2025 08:01

Olho as minhas próprias mãos; por um momento, sinto que as desconheço. Como se não fossem minhas, como se afinal tivessem vida própria

Ogasmo
Diz ele: “A nossa mente é o único sítio em que somos verdadeiramente livres: quando pensamos, quando imaginamos, quando sonhamos.” Responde ela: “Mas por vezes são os pensamentos, as imaginações, os sonhos que nos aprisionam. A verdadeira liberdade talvez esteja no nada. Em não pensar nem imaginar nem sonhar.” Ele: “Isso é o mesmo que estar morto.” Ela: “Não. Não é o mesmo que estar morto. Há momentos em que não pensamos nem imaginamos nem sonhamos. Porque não é preciso. E é nesses momentos que nos sentimos mais vivos e livres. Não sabes de que falo, pois não?” Ele: “Não. De que falas?” Ela: “De orgasmos.”

Potencial-de-prontidão
Está imóvel há tanto tempo que ela começa a preocupar-se. É por isso que ganha coragem e se aproxima lentamente, com timidez; em silêncio; aproxima-se porque a imobilidade dele a preocupa. Mas quando chega perto dele, não sabe o que fazer, a timidez impede-a de agir. Olha-o e espera, pensando: gostava de o tocar. Um desejo que nasce algures no seu corpo e aí fica, aprisionado. Inconfessável. É então que ele a olha; e sorri. Diz: “Bem sei, parece que estou parado há horas. Mas não é verdade. Estou a pensar, e pensar é uma forma de movimento. O pensamento é acção, não achas?” E continua a sorrir. Ela também sorri. Agora sabe onde nasceu o desejo que teve de lhe tocar. No pensamento. Diz: “Sim, o pensamento é acção. O princípio da acção.” E toca-o.

Premonição
Olho as minhas próprias mãos; por um momento, sinto que as desconheço. Como se não fossem minhas, como se afinal tivessem vida própria. Como se fossem independentes de mim. E pergunto-me (ouço a minha voz interior ecoar dentro do meu espírito): que pensamentos terão as minhas mãos? Mas então chegas tu. Finalmente. Sorrio e, levadas pelo sorriso, as perguntas desaparecem-me imediatamente do espírito, deixam de ecoar. Percebo que te estou a tocar, que os meus dedos acariciam o teu rosto; e é então que percebo em que pensavam as minhas mãos. Em ti.

Pulsação
Escuto o suave sussurro da respiração do meu corpo. Mas será que a minha alma também está a respirar? Como perceber se está viva, se não ouço nem sinto a sua respiração? Se não a sinto pulsar, se não sinto o bater do seu coração? Como saber o que faz respirar a alma?

Serendipidade
A expressão do seu rosto está apática, desemocionada. Diz: “Olha-me nos olhos.” E eu assim faço. Diz: “Vês como sorriem?” Sim, vejo como sorriem. Sorriem mesmo. Sorriem tanto. Apesar da sua boca permanecer apática, desemocionada. Os olhos sorriem. Pergunto-me com quantas partes do corpo já me terá sorrido. Pergunto-me quantos sorrisos seus terei perdido.

(Textos incluídos no livro GEOGRAFIAS CORPORAIS, com a fotógrafa Ana Gilbert.)