Opinião

De dentro para fora

2 jan 2020 10:00

As palmas e as lágrimas vieram do impacto causado pela descoberta de seres humanos capazes de fazerem bem feito

Passou-se já mais de um mês sobre o espectáculo final do projecto Pavilhão Mozart, em que foram apresentados excertos das criações resultantes das duas partes em que se dividiu: a primeira fase com a SAMP e a encenação da ópera Cosi Fan Tutte, e a segunda, a das residências artísticas de dança, de teatro e de multimédia, com a Escola de Dança Clara Leão, o Leirena e o Casota Collective a trabalharem, durante três meses, com um grupo de jovens reclusos da Prisão Escola.

Depois de os quatro espectáculos terem sido anteriormente apresentados dentro da prisão, tudo se passou depois no Teatro José Lúcio da Silva.

E o que lá se passou foi uma belíssima mostra de capacidade criativa e de interpretação a fazer soar palmas entusiásticas e cair algumas lágrimas pelo que se dava a ver, a ouvir e a sentir, em cima do palco; e não apenas porque se estavam a ver dançar, cantar, e representar, reclusos de quem não se espera receber actos criativos carregados de simbolismo e beleza.

As palmas e as lágrimas vieram do impacto causado pela descoberta de seres humanos capazes de fazerem bem feito, de trabalharem para conseguir, de entenderem a delicadeza, a emoção, e o significado das palavras e das ideias, e de se lançarem no desconhecido de serem cantores, bailarinos e actores, na vontade de poderem pensar-se melhor.

A descoberta de outros como nós, portanto. Desde tempos imemoriais que o Homem tornou o Bem e o Mal, a dicotomia mais radical e intransigente por que se rege, mas, sobretudo, pela qual avalia o Outro. E o mal, o errado de qualquer tamanho, quando praticado pelo Outro vence quase sempre a empatia, a compreensão, e a dádiva de uma segunda oportunidade que quase sempre damos a quem nos é próximo e, acima de tudo, a nós mesmos. Praticado por nós, o mal e o errado têm sempre explicação; praticado por quem nos é próximo, tem atenuantes e permite segundas ou terceiras oportunidades; praticado pelo Outro, apenas merece castigo.

E sim, todo o mal merece castigo, merece pena; mas, acima de tudo, o ser humano que o pratica merece entender realmente o que fez, perceber porque o fez, avaliar as suas consequências, arrepender-se de o ter feito e, finalmente, reorganizar o pensamento sobre si próprio e a noção de vida em comunidade de forma a não o voltar a fazer. Para isso serve a expressão artística: uma forma de olhar para dentro, primeiro, para fora depois, e aprender a ler nos olhos de um desconhecido a vida que lá dentro acontece.

De Dentro Para Fora se chamava a peça coreográfica onde os dez reclusos dançavam com dez bailarinas cujas idades se aproximavam das deles. E é aqui que acontece o pequeno milagre da aceitação, da segunda oportunidade, da descoberta do Outro, da procura de pontos de encontro, da emoção partilhada, da empatia, e da certeza de que algo de belo pode ser feito em conjunto.

É aqui que começa a reinserção, e a inclusão, praticadas de uma forma intuitiva, “inocente” e verdadeira.

Adolescentes e jovens adultas usando a sua arte para chegar a outros adolescentes e jovens adultos que em alguma altura se perderam de si próprios.

Olhar os outros e vermo-nos, é o meu desejo para 2020!