Opinião

Decantadores de silêncios

2 jul 2022 15:45

Será sempre subjectiva e inferencial a razão pela qual o poeta escreve

Será sempre discutível e sujeita a uma diversidade de impressões a opinião valorativa que diga respeito ao poeta mais proeminente, aquele que por unanimidade seja o representante incontestável da portugalidade e da denominada “alma lusa”.

Poderemos catalogá-lo, tendo por referência épocas históricas, ou períodos particulares da nossa existência e afirmação no mundo, numa atitude de autópsia contemplativa, como quem busca os indícios da matriz ou a razão para a denominação de um “supra summus” da arte poética.

Haverá, certamente, fundamentos que se circunscrevem ao cânone literário, ou aos movimentos estéticos e artísticos.

Tudo dependerá da perspectiva ou do ângulo de dissecação que pretendamos realizar da obra, que sem reservas prevaleceu até ao presente, como um reduto da contemporaneidade, ou como o breviário de um intemporal quotidiano.

Mas é sobretudo com o crivo da comoção que emana da escrita - por ser autêntica e voraz na sua acutilância - que nos sentimos enleados nesse vivo organismo composto apenas por ‘palavras’, potenciador do assombro que se hospeda na mente, daí instilando uma espécie de encantamento que prevalece (e não se esgota), muito além do momento em que lemos.

Ecoa no pensamento, alojando-se na alma, um código da nossa interioridade.

Detenho-me em Fernando Pessoa, na genialidade da sua existência heteronímica e vastidão do seu legado poético.

No exímio ‘Homem-Poema’ que representa a mistificação da universalidade civilizacional portuguesa.

A ele devemos o prazer de citar versos como quem entoa um oráculo.

Será sempre subjectiva e inferencial a razão pela qual o poeta escreve, ou se exprime por via dos versos e de um núcleo complexo de imagens vocabulares, enovelado em metáforas e tecituras imagéticas.

Talvez até o próprio desconheça o motivo por que recita, como quem reza a um Deus do silêncio, denotando que o seu labor é de inaudível ressonância.

A poesia é a virtude que invoca o acto reflexivo sobre a relação que se estabelece entre verdade, existência e identidade, ainda que nem sempre de modo explícito (podendo essa essência surgir cifrada).

E estas dimensões conferem notabilidade e substância ao clamor poético. Pessoa afirma: “Sentir é compreender. Pensar é errar. Compreender o que outra pessoa pensa é discordar dela. Compreender o que outra pessoa sente é ser ela.”

Esta citação, retirada do livro Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação da sua autoria (Ática, 1966), traduz a saciedade e consciência que devemos à poesia e aos poetas.

Poder encontrar nos seus sentidos e construções o lugar do assombro, essa proximidade ao objecto oculto que nos move pelo espaço-tempo em que nos situamos, possibilitando o acesso à consciência, por via dos sonhos que decantam a honestidade nas dolências da vida.

É esse inaudível “zumbido dos pensamentos que se evadem na mente” referido por Pessoa que nos demonstra a transformação e fascínio que nos conquistam ao contemplarmos a matéria inventiva gerada sob a expressiva acutilância psicológica, que vai muito além da espiritualidade de um poema.