Opinião

Dicionário improvisado (II)

20 jan 2022 15:45

Deveríamos viver sôfregos de luz na pele, nos olhos, na respiração

Cortina
A luz que guardamos dentro de nós nunca parece suficiente, e é por isso que nos sentimos escuros. Deveríamos viver sôfregos de luz na pele, nos olhos, na respiração. Encher os pulmões de luz com cada inspiração, e iluminá-los a partir de dentro. Mas não: protegemo-nos da luz. Inventamos cortinas, e é por isso que nos sentimos escuros.

Fio
Imagina que és um papagaio de papel a voar entre as nuvens, no meio do céu azul. Sabes aquele fio fininho e quase invisível que te prende à terra e te guia, que te dá sentido e orientação? É a memória. Se não fosse esse fio, andavas simplesmente às voltas, perdido no vento.

Fixação
Gostaria que tivesse existido uma forma de fixar aquele momento, de fixar aquela memória, de fixar aquela sensação de mundo suspenso. De fixar aquela felicidade. Mas a felicidade nunca se deixa fixar. É livre.

Liberdade
A verdadeira liberdade apenas existe na mente de cada pessoa? Será uma ideia, um conceito, uma abstracção? E para que serve a liberdade conceptual na mente, se depois não se consegue materializar? O que acontece quando as liberdades de mente e corpo não estão em sintonia? Para onde nos empurraria a nossa liberdade, se nos deixássemos conduzir por ela? Para onde nos levaria? Como se dá corpo à liberdade? E se a liberdade for a única companhia que temos?

Mensagem
Sonhou que estava deitada na praia. Sentia a areia nas costas nuas e olhava o céu enquanto escutava o murmúrio das ondas. Estava convencida que o mar falava consigo, tentando dizer-lhe um segredo ou revelar-lhe uma mensagem importante; mas não entendia a sua linguagem, não percebia qual o sentido daquele sussurro repetitivo. Sabia que enquanto não percebesse qual era a mensagem, não poderia sair dali; teria de continuar a sentir o sol do fim da tarde aquecer-me a pele, teria de manter o olhar fixo no céu. Teria de esperar, até entender.

Presença
Porque precisamos de destinos? Talvez sentir paz seja isso: não precisar de ir.

Silêncio
Todos os dias pela manhã entrava na igreja, sentava-se num dos bancos desconfortáveis, fechava os olhos, sentia a respiração durante longos minutos. E depois fazia o seu pedido habitual, dirigindo-se a um deus em que não acreditava: ensina-me o silêncio.

Voo
Terá alguma vez existido, em toda a história do planeta, um pássaro que ao iniciar o voo tenha pensado no pouso? Importa o bater de asas, apenas o bater de asas. Os pássaros sabem isso. Apenas os humanos se preocupam com o não-voo; e foi por isso, por se focarem no pouso, que um dia perderam as asas; um dia distante, algures num tempo que já nem recordam.