Opinião
Dicionário improvisado (V)
O que sente um avião quando não voa?
Alma
O corpo é composto por muitas partes, toda a gente sabe isso. Mas por vezes esquecemo-nos que se passa o mesmo com a alma. Não é?
Desejo
Será o desejo uma tentativa de comunicação com o outro ou apenas a manifestação da necessidade de contacto, uma materialização do instinto de sobrevivência? É o que lhe pergunto; ela sorri e responde: se existe desejo, haverá sempre possibilidade; e por vezes é quanto basta.
Felicidade
Se os aviões são verdadeiramente felizes quando voam, o que sentirão em todos os outros momentos? O que sente um avião quando não voa? Será infeliz, ou sentirá uma felicidade diferente daquela que tem quando voa? Quantos tipos de felicidade existirão, afinal?
Gás
Sempre gostei de observar pessoas, sempre gostei de lhes escutar fragmentos de conversas e, através das suas vozes, intuir-lhes um pouco dos pensamentos. Mas as pessoas já não falam tanto como antes, parece que protegem os pensamentos; guardam-nos. E não entendo porquê; se não são verbalizados, para onde irão todos esses pensamentos que as pessoas têm dentro de si? Permanecerão aprisionados nos corpos para sempre? Formando gases, talvez.
Instante
Sorrio e carrego no botão do elevador. A vizinha corresponde ao sorriso, olhamo-nos durante um instante. Não nos conhecemos verdadeiramente, não somos importantes um para o outro; apenas um rosto conhecido e um sorriso familiar, não sabemos que abismos de pensamentos se escondem atrás desse rosto nem que abismos de emoções se disfarçam por trás do sorriso. Não sabemos e não queremos saber, a vida seria insuportável se conhecêssemos a intimidade de todas as pessoas com quem nos cruzamos. Anda assim, os nossos olhares (e os nossos sorrisos) comunicam de um modo que está para além das palavras, e por isso para além da compreensão. É algo que me pergunto, por vezes: será que aquilo que não pode ser dito não pode ser compreendido? E entretanto o instante passou, apesar do elevador ainda nem se ter movido.
Percurso
Quantas curvas existem numa recta?
Perspectiva
Vejo um menino que passa na rua; tem um balão na mão. De repente, o fio do balão escapa-lhe dos dedos e foge; sobe em direcção ao céu, devagar. Olho o balão, apreciando o seu voo livre; o menino olha o balão, apreciando o seu voo livre. De repente, percebo: o menino deixou o balão fugir de propósito; libertou-o. Ficamos a olhar durante muito tempo: até o balão desaparecer. Depois o menino continua o seu caminho rua abaixo; e eu fico.
Protecção
A pele que me protege é a mesma que me permite sentir o mundo. Mas por que motivo me quero proteger?