Opinião
Dicionário improvisado (XVI)
A pessoa que beijaste repetidamente é a mesma que, agora, não suportas olhar
Comunicação
“Porque andas sempre tão depressa?” Perguntou o pássaro ao avião. Mas o avião não ouviu porque a pressa é surda; e os pássaros não falam.
Disrupção
Era uma manhã igual às outras. Uma brisa ligeira, o céu azul lá em cima; por vezes passavam nuvens. Havia silêncio, excepto o rumor incessante formado pelas respirações dos milhares de seres que viviam naquele pedaço de floresta. Havia manhãs em que não passavam nuvens; havia manhãs em que passavam tantas nuvens que não se via o azul do céu. A cada momento morria um dos milhares de seres que viviam naquele pedaço de floresta; mas em cada momento também nascia outro ser; e por isso, o rumor formado pelas respirações permanecia incessante. Era portanto uma manhã igual às outras; céu, respirações, etc. Até que uma árvore (uma das mais caladas, que podia passar estações inteiras sem se fazer ouvir; não havia memória de alguém alguma vez a ter ouvido rir) disse às árvores que estavam ao seu lado: e se hoje fôssemos passear até à praia?
Esclarecimento
A mulher desdobra lentamente a lona e prende-a à parede. Muita gente passa ali àquela hora, mas quase ninguém repara na mulher e na sua lona, onde está escrito “liberdade confunde-se com vulnerabilidade”. Durante algum tempo, as pessoas continuam a passar, a lona continua a ser ignorada. Até que a mulher se começa a despir, até ficar completamente nua. E de repente a lona passa a ser lida; e a fazer sentido.
Inconstância
A pessoa que beijaste repetidamente é a mesma que, agora, não suportas olhar. Passaram apenas quatro meses.
Perfeição
Cada subida é uma possibilidade de aperfeiçoamento da queda. Prudência Evitar perguntar a alguém de quem se gosta se é feliz.
Revolução
Um beijo.
Sucesso
A certeza da queda começa no primeiro passo da subida.
Tolerância
Postura ou comportamento adoptado por pessoas arrogantes que não têm consciência da sua arrogância.
Transparência
Por vezes vinham pessoas de longe para assistir: sentavam-se por perto, geralmente no chão, e permaneciam silenciosas; como se estivessem numa cerimónia religiosa. O jardineiro ia fazendo o seu trabalho, aplicando o saber milenar de que era portador; e gesto após gesto, a árvore era submetida a uma subtil mudança. Mas não era a mudança – o resultado – que interessava aos observadores; o que prendia a atenção de quem se sentava por perto, geralmente no chão, era o processo. Porque o jardineiro era cego; e como não via o que estava a fazer, encontrava-se ao mesmo nível da árvore, que não via o que estava a ser feito. A comunicação que estabeleciam era destituída de qualquer avaliação ou juízo, porque as avaliações e os juízos baseiam-se na observação. E eles não viam. A sua comunicação baseava-se no toque, e por isso era pura; transparente. Por esse motivo é que vinham pessoas de longe para assistir: queriam testemunhar a transparência.