Opinião
Esquecer
Vivemos na quimera de acreditarmos em nós
Há uma volatilidade na consciência, no retrato que fazemos do mundo e de nós mesmos.
Ao aprender modificamos parte das memórias, criando outras novas. Para isso, precisamos esquecer.
Este paradoxo é um constructo da existência.
Do ponto de vista evolutivo, somos imaturos e incompletos, usando uma ínfima percentagem das competências que o cérebro proporciona.
Por sermos incompletos nas aptidões sensoriais, cognitivas, de memória, de atenção, de consciência e controlo, temos uma capacidade limitada de elaboração mental.
E isso acarreta vantagens.
Em paralelo, julgamos ter um retrato completo do que ocorre à nossa volta e do que sentimos ou intuímos, quando, no fundo, tudo é mera ilusão.
Vivemos na quimera de acreditarmos em nós.
Porém, se não acreditarmos, surge o dilema. Julgamos que abarcamos tudo, quando, em verdade, a consciência é volátil e efémera.
Temos, recorrentemente, a noção de que decidimos o que fazemos, quando a cada instante somos condicionados por necessidades e desejos.
O cérebro sofre modificações sempre que o corpo transmite ao sistema nervoso central as experiências vivenciadas. Ocorre um rearranjo dos circuitos neuronais, o que prioriza as activações cerebrais face a outras.
A mente serve o corpo. É uma estrutura especializada na interface com o exterior, assumindo funções de monitorização do próprio corpo.
Mark Solmes (neuropsicólogo sul-africano), afirma que a consciência é aquilo que acontece na memória de trabalho, algo que dura menos de um minuto e está constantemente a ser (re)edificada.
Há vários planos de funcionamento consciente.
O mais básico prende-se com a vigília: o estar acordado e perceber “onde” e “como” estamos.
Depois, há um outro: o da auto-reflexão (“o pensar em tudo”), descentrando-nos do imediato, movidos pela influência situacional, (p.e., quando atendemos ao que nos estimula), como escutar uma música que reporta experiências antigas.
E, depois, há a capacidade de (re)elaborar uma dada circunstância na presença ou ausência de outra(s) pessoa(s) significativa(s), que têm (ou tiveram) a capacidade de olhar para o nosso contexto, na perspectiva de partilhar uma história.
Essa partilha dos mesmos conteúdos mentais recorre ao constante aporte de informação que o corpo faz chegar à mente.
Quando a informação não existe, o cérebro deixa de trabalhar sobre esses conteúdos com um propósito: o de cuidar do corpo, dando-lhe o melhor equilíbrio possível.
O cérebro pode mudar de propósitos.
Prescindimos, (in)conscientemente, daquilo que o corpo já não precisa e adaptamos o que existe como matriz para novos dados de que carecemos no presente e futuro.
Quer a nível motor, emocional e autobiográfico, as memórias são reformuláveis. Modificar a nossa “base de dados” é viável.
É imprescindível libertar-nos do nosso “fardo” mental, dizendo: “Esquece”. Possibilitar que as memórias – boas ou más – fluam com calma para fora da consciência.
“Fechar as portas e as janelas da consciência durante algum tempo”, como afirmou Nietzsche.
“Permanecer imperturbado pelo ruído (…); arranjar espaço para coisas novas – é essa a finalidade do esquecimento activo, que é como um porteiro, preservador da ordem, do repouso e da etiqueta psíquicos”.
Nietzsche foi perentório ao afirmar: (…) “não poderia haver felicidade, (…) esperança, orgulho ou presente sem esquecimento”.