Opinião
Gramática da Fantasia… Património Imaterial do Eu…
Mãe, gostas mais dos teus livros ou de nós?
Perguntam vezes sem conta os meus filhos intuindo o quanto valorizo os meus livros, discos, filmes ou os pequenos tesouros guardiões de memórias que colecciono e guardo em caixas antigas, malas e outros receptáculos pejados de histórias e de história. Cada um deles pode contar um momento de mim ou de outros que se me cruzaram no caminho.
Nos últimos dias tenho pensado as relações entre a arte e o indivíduo, de que forma é que um livro ou uma experiência cultural transformam o território individual que é cada um de nós e o coletivo que somos todos.
A arte relaciona-se com todos e transforma a nossa forma de olhar o mundo, de estar com o outros, de nos relacionarmos e impregna-se no nosso ser, no nosso modo de vida e naquilo que é o nosso EU.
Recentemente Justine Simons, vereadora da cultura e industrias criativas de Londres e presidente do fórum World Cities Culture dizia em entrevista ao Público, que “a cultura é determinante para o que somos, é o nosso ADN.”
Pode ser uma frase feita, perfeita para um lead jornalístico, mas não somos nós na verdade feitos das pessoas que se cruzam connosco no caminho? Das viagens que fazemos?
Da música que nos acompanha desde as nossas primeiras memórias, dos livros que lemos, dos museus que visitámos, dos espetáculos a que assistimos?…todas estas experiências nos estão tatuadas na pele e no modo de estar, de olhar o mundo e o outro…
Walter Benjamim falava da aura da obra de arte e, na verdade, congratulamo-nos com um sentimento de pertença em relação aos locais que visitámos e uma sensação de ter feito parte, de ter estado lá, de o ter experienciado na primeira pessoa, em relação aos momentos de fruição de um espetáculo ou momento artístico.
Pelo contrário assola-nos um sentimento de vazio ao assumirmos que por algum motivo não pudemos estar presentes , naquele ou noutro momento que valorizamos, ancorados numa pesada auto punição, que nos acompanhará vida fora…
(As artes e o conhecimento ampliam-nos e temos consciência disso, valorizamos o capital cultural em nós e validamos a sua importância nos outros conferindo-lhes um respeito acrescido na medida em que lhes reconhecemos um capital volumoso e incontestável.)
Vivemos hoje na era do digital, estando a informação à distância de um qualquer interface multimédia, as humanidades digitais ganham terreno. Lemos jornais e livros na web, ouvimos música nas plataformas online; vemos séries e documentários em streaming e até nos passeamos na realidade virtual de um museu, biblioteca ou qualquer outro lugar à distância de um clique.
Mesmo assim agrada-me colecionar livros, e discos, e filmes, senti-los nos dedos, cheirá-los, (que me perdoem as correntes minimalistas em voga) como uma evidência do imenso património imaterial do nós. Fui um dia destes ver o concerto de uma das minhas bandas favoritas.
No after party, o DJ, o Tiago, que muitos conhecem dos bastidores de músicos como o Tigerman, ou os Wraygunn, entre outros, apresentou-se no seu alter-ego A BOY NAMED SUE com uma performance irrepreensível, e que mais uma vez me levou a questionar a importância das vivências artísticas e do património imaterial do eu, trazendo consigo mais de uma centena de discos de vinil que contam a sua história, rotação a rotação…
Como podemos não ter um apego a alguns dos nossos tesouros, se com eles se confunde o nosso próprio eu? Perdê-los seria perder uma parte de nós... irremediavelmente.
Texto escrito segundo as regras do Acordo Ortográfico de 1990