Opinião

Cinema e TV | Isto é uma coisa a ver: Em queda livre

27 fev 2023 16:29

O tom geral da série é negro, revelando algum pessimismo em relação ao que está do outro lado do ecrã, ou seja, às possibilidades contidas na tecnologia e aos resultados do seu impacto na reconfiguração do ser humano e das suas relações pessoais e sociais

Black Mirror é uma série britânica de ficção científica com 5 temporadas, criada por Charlie Brooker em 2011, que aborda, essencialmente, as possíveis consequências do desenvolvimento científico e tecnológico. Os episódios da série são autocontidos e têm em comum imaginar presentes alternativos ou futuros próximos, que poderiam existir a partir de uma pequena inovação tecnológica ou de uma alteração no uso das tecnologias já existentes, explorando os diferentes modos de cognição e relação que daí resultariam.

Cada episódio constitui-se, desta forma, como uma experiência mental que explora a relação dos seres humanos com a tecnologia, com os outros seres humanos e consigo mesmos. A escolha da expressão espelho negro (black mirror) para título tem implícita uma referência intertextual a Alice do Outro Lado do Espelho, de Lewis Carroll, mas, acima de tudo, é uma alusão, assumida pelo próprio criador da série, aos ecrãs negros das televisões, computadores e smartphones, extensões tecnológicas que, cada vez mais, nos permitem diluir as diferenças entre sujeito e objeto, visto que num espelho o sujeito se vê sempre como objeto.

O tom geral da série é negro, revelando algum pessimismo em relação ao que está do outro lado do ecrã, ou seja, às possibilidades contidas na tecnologia e aos resultados do seu impacto na reconfiguração do ser humano e das suas relações pessoais e sociais (excepção feita a episódios como San Junipero e Hang The DJ).

Muitos episódios da série poderiam ser usados como exemplo, mas um dos mais divertidos será o episódio 1 da Temporada 3, Em Queda Livre (Nosedive). Realizado por Joe Wright, tem Bryce Dallas Howard (filha de Ron Howard) a representar Lacie, uma jovem mulher que vive num universo em tons pastel que lembra os subúrbios americanos da década de 1950, mas que na realidade é um futuro em que todas as pessoas estão ligadas a uma matriz virtual onde as interações pessoais são avaliadas numa escala entre 0 e 5, e cada indivíduo tem um valor que é a média dessas avaliações. A sua cotação é visível a todos e define a sua importância social, permitindo-lhe ou vedando-lhe o acesso a serviços, a empregos e até à compra de casa. A reputação social reduz-se ao valor que resulta da avaliação superficial feita por qualquer pessoa, o que obriga a um estado permanente de simpatia. O universo resultante implica bajulação permanente e felicidade fingida. Lacie, na sua tentativa de ascender ao grupo restrito dos 4.5 para poder comprar uma casa num bairro exclusivo, vai planear uma estratégia de aumento de popularidade e envolver-se num conjunto de aventuras, mais ou menos cómicas, mais ou menos trágicas, numa espiral que justifica o título do episódio.

Além de um alerta para o crescente protagonismo das redes sociais e da superficialização das relações que aí ocorrem, para os perigos da construção da autoimagem a partir das avaliações que os outros fazem com base naquilo que mostramos virtualmente ser, para a ditadura da felicidade e do bem-estar como únicos estados admissíveis, o episódio chama ainda a atenção para a crescente estruturação da sociedade com base numa reputação virtual sem fundamento em qualquer outro
tipo de mérito. Ficção?