Opinião
Letras | Animais nossos amigos (2021), il. de Dina Sachse OU a interpretação / estética da sensibilidade
O perfeccionismo do escritor continua de pé com esta cuidada e belíssima nova edição do clássico infantil, pela editora Parsifal, que está de parabéns
Passados que estão os 75 anos sobre a morte de Afonso Lopes Vieira (1946) – e com a sua obra liberta dos direitos de autor – não há criança que não lhe associe algum poema do livro de 1911, Animais nossos amigos. Tem sido, aliás, o seu livro mais reeditado entre nós ao longo de mais de cem anos, resultado da integração no cânone escolar (é recomendado para o 2.º ano do 1.º ciclo no PNL) e da adesão singular dos pequenos leitores de todas as gerações.
A 1.ª edição surgiu como resposta clara de Afonso Lopes Vieira à pobreza de textos adequados aos bebés e à sua educação artística, tal como Eça de Queirós deixara explícito numa das suas Cartas de Inglaterra, intitulada Literatura de Natal.
Preocupado com a questão educativa no nosso País e então no quadro da 1.ª República, o escritor e o amigo arquiteto, Raul Lino, projetam um modelo de escolas regionais, que acaba por não receber muita aceitação. Estavam acompanhados por um grupo de intelectuais portugueses, como António Sérgio ou João de Barros.
O poeta passa à ação com um livro de poesia como não se tinha visto ainda em Portugal – com temática e organização formal adequada ao nível de desenvolvimento psicológico dos mais pequenos. Daí que a palavra poética deveria aparecer como uma constante rítmica, interpretada por desenhos apelativos. Quem melhor do que Raul Lino (pai de duas filhas, hóspedes frequentes do escritor em S. Pedro de Moel) para ‘ilustrar’ este papel?
A receção crítica ao livro foi muito boa (se excluirmos alguns reparos relativos ao poema O lobo e São Francisco de Assis…) e, em 1920, conhecia uma tradução para espanhol, Animales amigos, com ilustrações de Arturo Ballester e Raul Lino; em 1931, com ilustrações de Maria de Lourdes, a 2.ª ed. portuguesa veio a lume, reeditada pelo ‘serviço de escolha de livros para as Bibliotecas das Escolas Primárias’; em 1973 há uma 3.ª, ilustrada por Eugénio Silva; em 1992, pela ed. Cotovia, nova edição fac-similada sobre a 1.ª ed.; em 1997, uma 5.ª, ilustrada por Isabel Flavila; em 2016, uma 6.ª, da ed. Atlêtheia, com ilustrações de Gulliver Vianei; e agora, em dezembro de 2021, da ed. Parsifal, com belíssimas ilustrações de Dina Sachse.
É precisamente das ilustrações de Dina Sachse (Vila Nova de Gaia, 1979), licenciada em Design de Comunicação e já com vários prémios na área da ilustração para a infância (prémio Matilde Rosa Araújo, 2017, com O Senhor Rimas, entre outras designações) que gostaria de tecer breves considerações. Atingem-nos com uma rara sensibilidade, reveladora de um estilo muito particular e de uma personalidade estética distinta. As figuras dos animais aparecem geometrizados em ‘origamis’ ao alcance da imagética da infância, cercados e num pano de fundo paisagístico de colagens e cores suaves. Os contrastes de cor, quando usados, ajudam a interpretação e desambiguação de alguma parte dos poemas.
Não quero deixar de mencionar a grata surpresa que a ilustração do poema de abertura, O cão, me trouxe pelo teor da sua sensibilidade interpretativa: a sombra do cão, na qual o cego pode seguir caminhos, figuração dos olhos iluminados do seu dono. Os humanos apresentam-se sem rosto e só São Francisco de Assis se identifica pelas barbas e a auréola, bem como pela inclusão no seu manto humilde da natureza: o lobo metamorfoseado em dócil cão.
Acredito que Afonso Lopes Vieira seria o primeiro a sentir-se próximo destas ilustrações: as sensibilidades dos grandes artistas atualizam-se com e no futuro.