Opinião
Letras | Arnaldo Matos (2022), O íntimo. Poemas & Divagações OU a crua espontaneidade do eu poético…
O livro agora publicado representou uma ‘lufada de ar fresco’ e uma ‘pedrada no charco’ do meio cultural marinhense
Nasci na Marinha Grande (1963), e sempre tinha ouvido falar de Arnaldo Matos (n. 1938), ilustre conterrâneo, mas não o conhecia em presença, nem nunca tinha lido nada dele.
O livro agora publicado pela Hora de Ler – O íntimo. Poemas & Divagações – e apresentado a 18 de junho de 2022, na sala Jorge Martins do Sport Operário Marinhense, pela estimada amiga e professora Margarida Font, representou uma ‘lufada de ar fresco’ e uma ‘pedrada no charco’ do meio cultural marinhense.
O piano deliciou-nos à entrada e no fecho da cerimónia, pelas mãos de dois jovens talentosos, e três belíssimas vozes masculinas disseram alguns poemas: janelas abertas para esta ‘montra’ íntima de Arnaldo de Matos.
Gabriel Roldão acrescentou algo ao que tinha ficado por dizer no “Prefácio” do livro; porém, foi o autor quem mais nos surpreendeu com a sua autoironia, para além do que já tinha brevemente sintetizado na “Introdução”: “Hesitei muito em tomar a decisão de publicar o que compõe este livro. // Fiz muito pouca escolha, não tive sombra de cuidado na organização temática e cronológica. // A maioria do agora publicado foi escrita entre os meus 70 e 83 anos, depois dos livros A Nu [1988] e Emoções [-69, 2007]. O que aqui se inclui, já publicado nesses livros anteriores, é o que entendi como mais relevante. // Homenageio os meus camaradas da Companhia de Caçadores Especiais 303, formada a partir de Lamego em 1961 e que veio a operar em Timor-Leste entre 62 e 64, e os que escolhi como amigos enquanto operários e empresários de moldes, plásticos e outros. // Relevo o facto de não me assumir como escritor ou poeta. // Obrigado a quem tiver a bondade de ler.” (opus cit., p. 13)
Efetivamente, o livro estrutura-se em 3 grandes secções – Poemas (255), Divagações (102), Resumo de Vida (16 entradas) – a que se acrescentam no final algumas fotografias (22), num total de 238 páginas. Acontece que alguns dos Poemas podiam estar entre as Divagações, e o inverso também seria possível; e o Resumo biográfico pode ser uma tentação para nos levar a interpretações biografistas (pelo menos dos poemas…); e embora as fotografias tenham sido selecionadas de acordo com a Dedicatória, seguramente mais haveria a dizer sobre o real poético transbordante destas imagens… Talvez esta seja a ironia fundamental e fundadora do livro: mais artesanal do que oficinal, Arnaldo Matos quis partilhar a espontaneidade da sua criatividade rebelde e ostensiva, sem atilhos aprisionados a nenhuma academia ou critérios que estilhaçassem as emoções e as opiniões íntimas do sujeito escrevente. E aqui reside a questão (como tão inteligentemente a colocou Margarida Font) de detetar o ‘fingimento’ deste eu poético, que não se assume nem como escritor ou poeta…
Os Poemas seguem um trilho labiríntico de temáticas várias e sobrepostas: amor filial, memórias dos instantes, lugares marcantes, tempos registados, emoções transbordantes, críticas agrestes, sabedorias questionadas, banalidades cruéis, identidade oscilante, reflexões poéticas. Formalmente, apresentam-se todos sem pontuação; alguns com a brevidade própria dos haicais japoneses; todos com um ritmo vertical e irónico (veja-se o poema ‘é um espanto’: tenho o poema / simples / o poema transversal / que de tudo trata a bem ou a mal / […], p. 41), convite à subjetividade de cada leitor.
O ‘poeta clandestino’ que vive dentro de Arnaldo de Matos, fez ‘contas à vida’ – ‘paciência’ (vd. p. 78) – e ainda sente o aroma do ‘romantismo social revolucionário’ (vd. P. 153) com portas abertas pelo 25 de abril.
O íntimo remata a linha emocional de A Nu?
Na contracapa do livro há um desenho do autor, que deixou de ser inédito, e “O cavalo triste”, nas Divagações, que autorizam o leitor a ficar à espera de mais… daquele que não se assume como artista.
Por mim, foi uma boa surpresa esta revelação espontânea de um homem-artesão-oficinal.