Opinião

Letras | Carlos Lopes Pires (2022), as rosas impossíveis OU a poética do toque de Deus e seus prodígios

23 set 2022 10:45

O poeta prosseguirá abraçado em si próprio, juntando-se à estrela-lugar de onde veio

Se a nomeação do real aparente, que foi dada à invenção dos seres humanos, é feita de descrições linguísticas por semelhanças, contrastes e oposições, a interpretação dos nomes imaginados artisticamente transporta, metaforicamente, para uma profundidade-outra (‘ponto cego da existência’?), um não-lugar sem tempo (a ‘matéria negra’ ou o ‘prodígio divino’?), abismo (’buraco negro’ ou ‘abundância’?) capaz de absorver (iluminar?) banais fronteiras como possível/impossível, sabedoria/ignorância, mundo/província, e criar o prodígio da cura.

Carlos Lopes Pires apresentou no sábado, 10 de setembro, no Moinho de Papel, em Leiria, o seu 24.º livro de poesia, as rosas impossíveis, abraçado pela labiríntica torre/teia de amigos/suporte do poeta, sustentada e alegremente traçada com chuva de parcas rosas por Fulvio Capurso e numa cuidada edição da Hora de Ler, que respeitou os distintos registos entre os cursivos. Maria João Cantinho entrou no universo poético agora revelado e perseguiu a linhagem metafísica de uma poeticidade epifânica, partilhando com o auditório a sua reflexão crítica e educativa: além do poeta, o crítico estende a mão ao leitor (embora seja impossível adivinhar se as rosas são lidas por todos os ‘cegos’…). Não ouvi a música inicial de Léo Ferré, na voz de Dalila; porém julgo que também fez parte do mistério da sessão. Bem como as traduções de poemas para o espanhol e o inglês (a escuridão da língua enquanto cegueira…), as amigas intervenções dos que ‘desmascararam o poeta’ ou o iluminaram, lendo poemas de as rosas impossíveis para todos.

A minha leitura ignorante de provinciana possível ainda precisa do aparente alicerce da arquitetura/forma do livro de poemas para que a experiência espiritual do prodígio possa ser revelada ao Outro. Nos oito capítulos, partes, a consistência é diversa e o registo em itálico dos 26 poemas “do livro dos peixes e da lua” (4.ª parte) e dos 21 poemas de “o pássaro disse” (7.ª parte) pode indicar-nos que esses poemas foram soprados por uma voz-Outra ao poeta, intermediário para fazer chegar mensagens ao leitor. Isto é, li o “tu” destes poemas, primeirissimamente, como sendo o do poeta, que partilhou connosco, leitores, o que lhe foi dado originariamente. Exemplos: enquanto que viver / é caminhares / de aparência em aparência // morrer é tornares-te / abundante (opus cit., p. 165); nunca esperes / ter a verdade toda // acredita / não a suportarias // aceita / que nenhuma vida contém / senão uma pequena parte / da luz // que há na rosa (p. 169); […] // acrescentarei / que só quem ama / compreende // e mais não disse / o pássaro (p. 214); eis uma verdade // todos os poemas são / rosas impossíveis // agora / guarda neles / o teu silêncio (p. 216); […] um poeta não escreve, não fala nem ouve: é tudo que fala com ele. (p. 227).

Se estas 2 partes me parecem distintas – e não apenas pelo registo – estabeleci o arco com as pontes que as ligam e com o remate ou 8.ª parte. Em “mestre das abelhas” (5.ª parte, 12 poemas) o eu poético formula, numa dúzia de falas, o seu entendimento do poema como excesso facultado pelo mestre das laboriosas abelhas, sabedor de todas as palavras / que não bastam (p. 190). A 6.ª parte, “o poeta escreve cartas de amor aos filhos”, tem os mais íntimos, breves e tocantes 7 poemas de todo o Livro, como se a aprendizagem vinda da 4.ª parte encontrasse a sua sublimação antes da oração final com que findará a 8.ª parte: era uma promessa // e aqui me tens / agora // um pai / regressa sempre / ao coração dos filhos (p. 201). E assim nos 21 poemas “do livro das curas e dos prodígios”, assertiva e humildemente, pede alívio para as dores e feridas, reitera a crença em prodígios e milagres pequenos e simples; conclui: nasci para não ter fim // para uma ausência / onde rosa alguma cresce // alguns dirão / que será uma vida infinita // eu digo / repara no que digo // o infinito é aqui (p. 261).

Este parece-me ser o poema que fecha o ciclo aberto em “as rosas impossíveis” (1.ª parte, 66 poemas) e explanado em “o poeta da ignorância voltou” (2.ª parte, 60 poemas) e “um poeta de província” (3.ª parte, 20 poemas). Embora as 3 partes constituam o tronco principal do livro, as folhas novas da árvore nasceram nas 5 partes seguintes e indicam ao leitor que o poeta prosseguirá abraçado em si próprio, juntando-se à estrela-lugar de onde veio. Espero voltar a encontrar esse não-lugar em azedas e margaridas, o próximo livro anunciado…