Opinião

Letras | David Teles Ferreira (2021), Nariz de mulher, focinho de cão, cu de gente

6 nov 2021 11:35

O eu-narrador, um homem de meia-idade, a viver sozinho num prédio, começa a voar e – a partir daí – tudo muda

Quando, em 2019, escrevi sobre o livro de poemas, anti bucólicos, e o intitulei ‘o fim da ingenuidade’, estava longe de imaginar que o autor nos iria surpreender com este novo romance, mistura de ‘realismo mágico’, narrativa contada em 43 capítulos por um narrador participante e a escrever a sua autobiografia insólita e delirante.

O eu-narrador, um homem de meia-idade, a viver sozinho num prédio, e empregado num escritório, ‘trabalho de produção de inutilidades’, começa a voar e – a partir daí – tudo muda: o lugar das coisas, a forma como vê as personagens que com ele contracenam, as paisagens, os sonhos/pesadelos. Nunca perde a lucidez de raciocínio, nem as dúvidas – não é um louco… – e conclui, para descanso da sua timidez/misantropia: “Curiosamente, ou talvez não, ninguém parecia verme. Era como se eu estivesse invisível.” (opus cit., p. 9).

Será o relacionamento com os outros a dar-lhe alguma resposta para as suas muitas perguntas e inquietações. Assim com Alberto, o sem-abrigo, que parece ser o único a ter um vislumbre da estranheza/nova capacidade. Assim com Zé Manel, que tinha paralisia cerebral e andava numa cadeira de rodas, ou o Senhor Armindo, dono do quiosque de jornais e conhecedor das vidas íntimas da vizinhança; o Senhor Elias, da mercearia e padeiro; Nelo, o gago dos solilóquios; Alcina, a vidente; Rosália, a puta virgem, que acaba por casar com Rui, mais jovem e ajudante de oficina; Júlio, dono da oficina, setentão e sabedor de como se desenvencilhar das rixas idiotas; D. Etelvina e os amargos da sua solidão; as três Graças (idosas com mais de oitenta anos); o Senhor Plínio, senhorio do narrador; D. Lurdes, dona da pastelaria; Vanessa, a funcionária; Sr.ª D. Maria Hermengarda Pires Fonseca de Sousa Albuquerque e Alcaravela, a beata; Horácio e Maria Helena, os eternos namorados; D. Mariete, a fresca viúva cinquentona; a velha tia Rachel, participante na oposição clandestina; Bazaruco, vendedor de estatuetas de santos. Personagens fantásticas do quotidiano…

O primeiro indício de mudança será na p. 22, quando Alcina diz ao narrador: “– Não perguntes porque voas, mas o que voar pode provocar em ti.” Efetivamente, na sua invisibilidade voadora, o narrador vê situações humanas que o deprimem e a solidão começa a pesar-lhe. O segundo será quando ela lhe conta a sua história e mostra como a visão do que se passa dentro das pessoas se pode tornar inquietante e dolorosa – na intertextualidade o leitor pode encontrar uma Blimunda Sete Luas/Alcina, neste hic et nunc quotidiano.

Aos poucos, o narrador irá desenvolvendo a sua relação com os vizinhos, em especial com Zé Manel e Alcina, mas voar de cada vez o deixa menos satisfeito: “Remanescia, invariavelmente, a sensação de que faltava um propósito ou um significado.” (p. 127).

Com a doença do Zé Manel, a ligação entre o narrador e Alcina aprofunda-se e transforma-se em amor; depois da morte de Zé Manel os escritos que fazia secretamente aparecem publicados em livro e são a metamorfose da vida no bairro.

A linearidade não é a norma deste romance delirante: há muitas histórias de personagens interrompidas e só a posteriori concluídas. Semeados na escrita do narrador, estão os provérbios/adágios, sabedoria popular transmitida pela avó – que fecha o ciclo com o título do romance. O quotidiano tem sempre algo de delírio…