Opinião
Letras | Diccionario da Linguagem das Flores, de António Lobo Antunes
A cadência da escrita é de uma profunda melancolia, de uma decadência vivida
Ler os romances de António Lobo Antunes, dada a sua excelência, tem de ser um ato de entrega, de autossuperação, de manter todos os sentidos em alerta para captar a beleza da linguagem, a fina ironia, a graciosa metáfora e também, o que é mais exigente, atender a todos os pequenos indícios, todos os breves sinais que nos vão sendo deixados por um narrador inquieto e exigente, também ele atormentado, senhor de todos os meandros da narrativa e que constantemente salta da corrente da consciência de uma personagem para a de outra para, por fim, conseguirmos encaixar todas (ou quase todas) as peças do jogo no tabuleiro.
É o que acontece neste último romance de Lobo Antunes: somos levados a embrenhar-nos numa cerrada floresta de personagens ali chamadas para nos darem a conhecer a personagem principal – que nunca aparece na narrativa – todas elas carregando os fardos das suas vidas difíceis e, pior ainda, as marcas deixadas pelos fantasmas dos seus mortos.
A principal estranheza deste romance é a de vermos passar por nós toda uma plêiade de personagens que, de algum modo, contactaram com a personagem principal e que, de forma difusa, no-lo vão dando a conhecer através dos seus ensombrados monólogos interiores.
Assim, ao longo de 24 capítulos, vamos percebendo que se trata de um ‘ele’, educado, elegante, discreto, bem-falante, filiado no Partido Comunista, homossexual, filho de uma família rural abastada – agora em franca decadência – perseguido pela PIDE e preso em Caxias e no Tarrafal, sem nunca ter denunciado ninguém.
Socorrendo-nos de outras leituras, concluímos tratar-se de Júlio Fogaça, proeminente membro e dirigente do PCP na primeira metade do século XX. Uma vez apenas o seu nome (Júlio) é referido no livro a páginas trezentas e tal pela boca de um "controleiro" do Partido.
De igual modo não antes do capítulo 5 ficamos a saber a razão da escolha do título, quando a "companheira" apontada pelo Partido para o acompanhar no seu esconderijo, apaixonadíssima pelo seu fino trato, lhe oferece um velho livro encontrado num velho soalho, chamado Diccionario da Linguagem das Flores. A partir daí, poética e inesperadamente surpreendem-nos transcrições desse livro, com a ortografia antiga de oitocentos, referentes à vida das flores.
Não há como falar em unidade de tempo ou de espaço e menos ainda de ação neste romance. A ação evolui em corredores quase paralelos: o do Partido com os seus meandros; o da PIDE com os seus terrores; o da vida interior das personagens que aponta a miséria, a carência, o medo, a solidão, a doença, a morte; o da oposição cidade campo; e o da Natureza com a beleza por vezes opressora do mar, do rio, dos pássaros – as cegonhas sempre presentes – e das flores, nomeadamente as rosas, símbolo da mulher – silenciada, infeliz.
O tom, a cadência da escrita é de uma profunda melancolia, de uma decadência vivida – a quinta arruinada, mas também os casebres dos pobres. Um tom trágico que, nem a beleza das flores, nem a exuberância do sol consegue diluir.