Opinião

Letras | Duas décadas (2006) de Correspondência SOPHIA de Mello Breyner & Jorge de SENA: o fulgor da amizade

19 jul 2024 08:36

Os textos epistolares são, sobretudo, um hino à amizade, e os encontros/desencontros entre os dois amigos aparecem registados – irónica e causticamente por Sena e sempre poeticamente por Sophia

Não ainda há muito tempo, a troca epistolar era comum entre amigos e a de figuras ilustres para a cultura tornou-se uma fonte inesperada de informações, que antes nenhum estudo conhecia. Daí que a edição da correspondência entre os ‘grandes’ da nossa cultura deva ser considerada uma prioridade até à chegada dos meios digitais (que a fez implodir…) – os quais têm encontrado rapidamente o seu meio de ação e reação neste século XXI, quase eliminando toda e qualquer missiva postal…

Reli esta troca de correspondência entre Sophia (1919-2004) e Sena (1919-1978), no período de 1959-1978, publicada com os cuidados de Mécia de Sena e Maria Andresen Sousa Tavares (pela editora Guerra e Paz), que segue a ordem cronológica, mas em que há muitos hiatos e espaços truncados, não apenas devido aos desencontros do correio entre continentes, mas também por causa da interferência da PIDE. Precisamente, algumas cartas foram recuperadas no espólio da PIDE, tanto no processo de Jorge de Sena (Proc. 15 CI (2) NT – 6942) como no de Sophia de Mello Breyner (Proc. 29/51 SR – NT 2680). Porém, foi a viúva de Sena quem guardou todas as cartas de facto recebidas de Sophia, assim como os rascunhos das enviadas pelo marido. Sophia quase nada guardou – daí que tenha sido impossível preencher algumas das lacunas destas duas décadas.

Para cada leitor haverá vários focos de interesse, mas será impossível ficar indiferente ao ‘exílio voluntário’ do meio académico português de Sena, primeiro no Brasil e depois nos EUA. As dificuldades de progressão no competitivo meio universitário, bem como as financeiras (Jorge e Mécia tiveram 9 filhos), são uma constante nas missivas de Sena; nas de Sophia, as lamentações constantes são com o tacanho meio cultural e as lutas solitárias para lhe fazer face, bem como o apertado quotidiano de mãe e de esposa do advogado Francisco Sousa Tavares, cuja oposição à ditadura os fazia sofrer exclusões várias.

Porém, os textos epistolares são, sobretudo, um hino à amizade, e os encontros/desencontros entre os dois amigos aparecem registados – irónica e causticamente por Sena e sempre poeticamente por Sophia:

“[…] E, querida Sophia, nem Portugal nem a cultura portuguesa se salvam, ou nós com ela, para fora da relice contemporânea que é refinamento de uma canalhice imperial de séculos, se, mesmo por um milímetro, se aceitarem os mitos de que essa intrujice tem vivido e explorado o seu povo, para lhe comer das rendas. […]” (opus cit., p. 128)

“[…] Da minha vida nem sei o que diga pois não sei o que quero. E talvez já não seja tempo de querer qualquer coisa. Em parte foi por distracção que deixei passar a juventude. Pensei que passariam os problemas e não o tempo. […]” (opus cit., p. 140)

Enviam as suas obras e mostram como se leem enquanto críticos mais justos – que procuram, pois se admiram mutuamente – felicitando-se com as justas considerações públicas, ainda que a obra de cada um deles estivesse em competição. As cartas mostram à saciedade que a comunhão intelectual entre os dois sempre foi viva e crítica.

Dolorosamente, em 1968, a uma década da sua morte, já Sena confessa a impressão:

“ […] sem saber se estamos entre vivos ou entre mortos, porque as pessoas desaparecem, transformam-se em memória, e a gente vai ficando numa cada vez mais estranha irrealidade […]” (opus cit., p. 97)

Sophia & Sena permanecem vivos e estas cartas devolvem-nos a sua/nossa fragilidade, que só o fulgor das amizades pode contrariar…