Opinião
Letras | Filipa Martins (2023), O Dever de Deslumbrar – Biografia de Natália Correia OU os enigmas da Fátria...
Talvez o principal seja dito por Filipa Martins, quando sinaliza o facto de ser muito pouco o público que reconhece ou é leitor da sua obra literária: uma das grandes defensoras do povo e suas liberdades ficou ignorada naquilo que de mais artístico e livre produziu e deixou para a eternidade
O género ‘Biografia’ é um género textual que narra os factos da vida de uma pessoa – que se destacou social ou institucionalmente por alguma razão, mais ou menos consensual, na sua contemporaneidade – mas cuja ‘cronologia da intimidade’ revela vários traços obscuros.
Filipa Martins (1983), escritora premiada, romancista e argumentista (Elogio do Passeio Público, 2008; Quanta Terra, 2009; Mustang Branco, 2014; Na Memória dos Rouxinóis, 2018; coautora e coargumentista de uma série de televisão sobre Natália Correia) atreveu-se ao estudo apurado (pelo menos durante seis anos) e rigoroso da vida da escritora açoriana, de que resultou um monumental documento sobre alguns (muitos) dos enigmas da controversa, complexa e irreverente Mulher (1923-1993).
Uma primeira consulta do Índice pode revelar-se enganadora: as grandes 8 partes são as décadas (desde os anos 20… até aos anos 90), subdivididas em subcapítulos, cada vez mais numerosos à medida que a menina da Fajã de Baixo se transforma em adulta, já em Lisboa, e começa a criar o seu ‘reino de poesia, arte e verdade’, tantas vezes confundido com arrogância e altivez ou ziguezaguear partidário face ao estagnado ambiente político português que lhe coube viver (quer como escritora censurada na ditadura, quer como ‘ostracizada’ no pós 25 de abril pela sua frontalidade / conflitualidade).
Dos amores (castos e fraternos; tórridos e intrigantes para o olhar de um catolicismo ortodoxo e castrante), aos amigos (com fidelidades duradouras e traições episódicas); das desditas na Assembleia da República (as citações de excertos das suas intervenções nas atas atestam o rigor de investigação da Biografia), ao consolo no bar ‘Botequim’ (local onde se reunia grande parte dos artistas e políticos de então, e onde se ‘urdiam’ alguns dos ‘nós’ do futuro), sem esquecer o salão literário na sua residência da rua Rodrigues Sampaio ou os confrontos com a Censura nos anos 50 e 60; até à sua (re)descoberta dos e pelos Açores (que só teria acontecido já nos anos 70) e às suas tardias condecorações governamentais – quase nada fica por dizer…
Talvez o principal seja dito por Filipa Martins, quando sinaliza o facto de ser muito pouco o público que reconhece ou é leitor da sua obra literária: uma das grandes defensoras do povo e suas liberdades ficou ignorada naquilo que de mais artístico e livre produziu e deixou para a eternidade. Além dos 13 livros censurados durante a ditadura e publicados depois do 25 de abril aos solavancos do tempo e das oportunidades editoriais que nunca deixou escapar, a obra de Natália Correia distingue-a enquanto poetisa, mas enveredou também pelo género romance (Madona, 1963 e A ilha de Circe, 1983, serão talvez os mais conhecidos), contos, ensaios (quase todos desconhecidos, como Entre a Raiz e a Utopia: escritos sobre António Sérgio e o Corporativismo, 2018, publicado postumamente e tão recentemente a abrir a cortina cénica sobre a relação de discípula que teve com mestre A. Sérgio), antologias (a dos trovadores, de D. Dinis, do Barroco, da poesia erótica, dos Surrealistas, entre outras, a revelarem o seu gosto pela investigação), dramas (de que Erros meus, má fortuna, amor ardente, de 1981 e A Pécora, de 1983 serão os mais lidos e levados a cena) e ainda textos autobiográficos e diarísticos (Descobri que era europeia. Impressões duma viagem à América, 1951; Não percas a rosa: diário e algo mais (25 de Abril de 1974 – 20 de Dezembro de 1975), de 1978).
Deste grandioso mundo e suas misérias e percalços nos dá conta a autora da Biografia, num estilo que oscila entre a factualidade quase-jornalística e a reflexão quase-literária. Natália Correia não poderia deixar de apreciar este conceito de ‘Fátria’ entre duas mulheres de gerações tão distanciadas e que se encontram na escrita, capaz de desvendar enigmas.