Opinião

Letras | Irene Simões (2022), O destino da Estrelita OU o diálogo com os outros…

6 jan 2023 11:17

Motivar os leitores a levarem até ao fim os seus sonhos, ainda quando isso implique confrontarem-se consigo próprios

Conheci Irene Simões enquanto docente de unidades curriculares relacionadas com a Literatura Portuguesa e a Literatura para a Infância e Juventude, que ela decidiu frequentar como estudante do programa IPL 60+. Descobrimos afinidades de formação e aprendemos com os nossos percursos diversos, cruzados na paixão pela palavra artística. Acredito que, pelo menos o seu livro infantil Carlota e a Sardanisca lascarina, de 2018, terá tido um reflexo embrionário e gestacional nessas sessões, onde temáticas como as diferenças e o desvendar de pré-conceitos foram os leitmotiv criativos.

A relação de Irene Simões com a escrita já vinha de longe, em relação com a sua atividade de docente de língua portuguesa, e encontrei um volume de belíssimas e breves narrativas, inesperadas e surpreendentes, Recontos, de 2013. Não te esqueças de ti, julgo que na área da literatura para adultos (não consegui aceder ao livro…), será mais antigo, mas teve uma 2.ª ed. em 2016; Faz de conta de gente feliz, de 2017, corresponde provavelmente ao ponto mais alto deste percurso, com a abertura para o género romance a abrir os horizontes de escrita. Gestão de Conflitos em Sala de Aula, de 2018, mostra ao leitor como o lado profissional de Irene nunca deixou de estar ativo, nem quando se encontrava já aposentada.

Com o novo livro de literatura infantil, O destino da Estrelita, Irene vem confirmar as expetativas abertas e entrega nas mãos do leitor um belo exemplar (as delicadas ilustrações são de Sandra Paiva), educativo e formativo, dentro da ética da atualidade.

O enredo gira à volta de uma menina, Maria, que encontra um cão recém-nascido e o adota, com a promessa de descobrir um dono para o animal ao fim de um ano. Há coincidências engraçadas como o facto de as duas personagens terem nascido/aparecido em dia de Reis – o mesmo em que Maria estabelecerá um pacto com o seu amigo Zé, a quem tinha morrido o velho e cego cão Black, para ‘guarda conjunta e partilhada’ da cadelita Estrelita. Porém, o fundamental são os valores que perpassam por toda a narrativa, situada em ambiente urbano, durante a pandemia: a necessidade de lidar com a solidão; a importância dos animais domésticos nos relacionamentos humanos; o dever da limpeza e cuidados sanitários desses animais; a extensão e alargamento de círculos de amizade; a entreajuda e proteção familiar; as ligações entre gerações; a capacidade de introspeção, reflexão e responsabilização das crianças.

Se a escrita nos chega sob a voz de um narrador omnisciente (que o jovem leitor se interrogará sobre as probabilidades de pertencer à mãe de Maria ou a uma Maria já adulta que ficcionaliza um acontecimento – autobiográfico ou não… – passado consigo na meninice), é interessante notar como as intromissões dos pensamentos de Maria, a que o narrador tem acesso incondicional, são uma estratégia inteligente: motivar os leitores a levarem até ao fim os seus sonhos, ainda quando isso implique confrontarem-se consigo próprios, e, alcançarem a capacidade de entender o ponto de vista dos outros, de se colocarem no papel deles, e agir em consequência – abdicando de um consolo/conforto infantil.

Nesta área, o livro faz a transição da fase do ‘pensamento mágico’, característico de fases etárias dos 2 aos 7 anos de idade, para o ‘pensamento lógico’, fase dos 7 aos 11/12 anos, em que a criança começa a encontrar soluções de compromisso com os outros que lhe permitam integrar-se como ser social.

Nas mãos de todas as crianças está o delinear de um destino responsável, com o encorajamento e proteção dos seus pais. Assim brilha a estrelita na cabeça da cadelinha: sinal e símbolo.