Opinião
Letras | Irene Simões (2025), O Lugar dos Dias Felizes e outras histórias OU abrir a memória aprisionada
Ler este livro é abrir janelas outras… não será suficiente; porém toda (só?) a criação artística ilumina a escuridão
Depois do Faz de Conta de Gente Feliz (2017), voltei a Irene Simões [IS] e ao recente livro de contos O Lugar dos Dias Felizes e outras histórias, apresentado o mês passado na dinâmica sala cultural da BM de Leiria ALV. Viagens à volta da felicidade (ou a memória que dela sobra aprisionada) – eis o leitmotiv que acompanha a autora, reiteradamente ligada à numerologia do infinito, com as oito narrativas enunciadas por 8 narradores diferentes (ou oscilantes) em 8 espaços muito variados.
O conto de abertura – “O lugar dos dias Felizes” – que batiza a coletânea, é uma trágica reflexão de um ensimesmado narrador autobiográfico que regista (em monólogo interior), seguindo os ziguezagues da memória, o seu passado em Alepo, antes do horror que a morte do pássaro verde simboliza. A surpresa da escrita poética revela-nos, só no fim da história, o nome do narrador Abdhul e Sara, a sua mulher, a lamentar a morte do pássaro verde – qual coro clássico das tragédias gregas: no acampamento, quando a morte suplanta qualquer esperança, até o passado mais banal se transforma no lugar da felicidade.
“O engodo”, através dum ágil dramatismo, mostra um sr. Alberto, utente de um lar de idosos, a quem a cuidadora/auxiliar recusa o prato de bacalhau cozido em função das regras nutricionais e salutares da instituição, enquanto revela os sonhos do passado familiar feliz e as incongruências de uma memória em processo de corrosão/fuga até ao desmaio/morte do final.
Em “A roseira de Alexandria”, talvez o conto mais próximo do classicismo e da desenvoltura da novela, o narrador de 3.ª pessoa conta a alquimia das férias da jovem Aurora em casa da avó (Maria Cândida), na pequena aldeia beirã. A aprendizagem da poda dos braços da roseira de Alexandria, as associações e os laços familiares com a vegetação são o motor do desenrolar do tempo, que transplantam a jovem estudante de objeto contado em narradora da sua própria história – “Trouxe uma haste comigo. Plantei-a, cresce e floresce também no jardim da minha casa” (opus cit., p. 51) – e a faz transitar para o próximo conto, “A casa dos abraços”, de novo como personagem-criança, testemunha da construção da avó como mulher forte e dos condicionalismos da vida rural no Portugal do início do séc. XX, desde a trágica queda-incapacitante do avô até à sobrevivência da família, de novo na 1.ª pessoa da voz intrometida no final: “E eu Aurora, tua neta muito amada me confesso também.” (p. 62)
“O rapaz que comia Granola” é um apontamento epistolar/diarístico/reflexivo da professora aos seus alunos, em especial ao que desafia o sistema, dando a ver/ler os sofrimentos circunstanciais que levam o adolescente a fechar-se em si mesmo e a querer ‘não ser nada’ (“Não conhecemos nunca o mais importante, leio nos teus lábios serrados [sic]”, p. 67), tal como a escola se enclausura nas repetições lassas e anacrónicas da tradição. O acidente de mota seria o fechamento da história do João; porém, a esperança do lugar do futuro da juventude abre a janela.
Em “Os ouvidos do senhor Dao” (antecedido por uma epígrafe de Confúcio) volta-se à oscilação entre a omnisciência da história de Dao e o relato na 1.ª pessoa da própria narrativa daquele que procura a filosofia da aceitação do corpo, em Hanói: “Aprisionadas, as emoções negativas causariam um desgaste tão grande como uma pequena gota de água a cair ininterruptamente num pedaço de pedra, só percetível aos homens que sabem ouvir.” (p. 94). “Pedra de Lume” é a história da menina-mulher cabo-verdiana, entre a ilha do Sal e Lisboa, à procura da sua identidade, por entre o caos de ciúmes e traições dos relacionamentos familiares que a condicionam. “Todos os dias o senhor Cândido” é o relato distanciado da transformação de vida da personagem da velocidade até à lentidão, “[…] uma sensação absolutamente agradável, quase uma alegria, uma coisa boa que ele não experimentara há muito e de que ainda tinha medo.” (p. 124)
O poema de Alberto Caeiro e o de Jacques Prévert, que abrem o ‘jogo da escrita’ de IS, revelam-nos os seus pertences culturais – a abertura da memória aprisionada é lenta como o reconhecimento dos dias felizes. Seja qual for o lugar em que nos encontremos: do mais violento ao mais calmo, no global mundo que nos coube como casa. Ler este livro é abrir janelas outras… não será suficiente; porém toda (só?) a criação artística ilumina a escuridão. Pássaro verde a voar na mestria da sensibilidade e técnica narrativa aprimorada e feliz: o passado dá frutos no futuro.