Opinião

Letras | João Luís Barreto Guimarães (2020) movimento OU celebrar a possibilidade

4 fev 2022 14:22

A obra poética de Barreto Guimarães tem evoluído numa linha contínua de reconhecimento em Portugal e no estrangeiro

João Luís Barreto Guimarães (n. 1967) é poeta, tradutor e médico. O seu primeiro título, Há Violinos na Tribo, saiu em 1989; depois disso publicou mais 5 livros, na editora Quetzal. Tem vários livros traduzidos e, mais recentemente, alguns prémios que falam por si: Mediterrâneo (2016, prémio António Ramos Rosa); Nómada (2018, prémio Livro de Poesia do Ano Bertrand); O Tempo Avança por Sílabas (2019, antologia de 100 poemas da sua obra).

A obra poética de Barreto Guimarães tem evoluído numa linha contínua de reconhecimento em Portugal e no estrangeiro, e no apuramento de uma rara ironia, bem como uma melancolia das coisas simples e quotidianas, de raiz profunda na cultura europeia das mais diversas geografias. Por isso as viagens poéticas são peregrinações pela poesia dos seus contemporâneos e pelas memórias da história, construindo assim uma gramática muito própria.

Em movimento, de 2020, celebra a vida inteira que cabe em cada dia (veja-se a epígrafe escolhida para abrir o volume). A obra está dividida, geométrica e rigorosamente (simetria?), em 7 partes, ligadas a planetas ou estrelas, cada uma com 6 poemas, que orientam (‘ocidentam’?) os movimentos do poeta (e os nossos?): dia de Saturno; dia do Sol; dia da Lua; dia de Marte; dia de Mercúrio; dia de Júpiter; dia de Vénus.

Em 42 poemas é a celebração da possibilidade e da expetativa do que venha a ser real, nesse movimento de promessa que transporta sempre a palavra poética. À PROCURA dos ‘admiráveis / poemas’ (opus cit., p. 18 in ‘Aristóteles dizia:’) que sobram das rasuras e limpezas dos excessos poéticos, da solidão da avó (‘As noites entre dois domingos’, p. 24), da esperança renascida nos lugares da guerra (‘Domingo de Páscoa em Mostar’, p. 25), da presença divina na escuridão do mundo (‘Os buracos negros são / as narinas de Deus.’, p. 26 in ‘Uma teoria de tudo’); das perguntas sem resposta (p. 32), ao interminável trabalho de criação poética (‘Não deves / baixar a guarda. Nunca podes / descansar. […] Então não / tens outro arbítrio do que arrepiar as mangas / (encher o punho de tinta) e / disparar a matar.’, p. 34 in ‘Segundafeira outra vez’); do ralo que suga a espuma dos dias (p. 37), dos domadores ardilosos no circo de Portugal (p. 39), do poder no mercado da patranha (p. 41), do reconhecimento da cólera quotidiana (‘Instruções para engolir a fúria’, p. 42); do regressar ao poema da véspera (p. 45), da homenagem a Manuel António Pina (‘[…] Não o fui ver ao hospital. Talvez / o quisesse ter para sempre / nesta alegria. Às vezes sei ser / tão cobarde.’, p. 46), da imperfeição do amor (pp. 48-9), do indelével da maior parte das tantas perguntas inquietantes (‘[…] Retiras a crosta à ferida / para manter a / dor acesa? […]’, p. 51); do humano desejo de felicidade (‘[…] Antecipa a felicidade sobre / a miséria dos dias / pensar a possibilidade é / ver um umbigo / em Adão.’, p. 55), do eco da razão (‘Elogio ao silêncio’, p. 56), do cuidado com e ante a violência (pp. 57-9), do desespero da aceitação (pp. 60-1); do sentido inexplicável do jogo dos dias (pp. 65-7), das recordações da beleza dos instantes (pp. 68-70), até ao final sentimento de derrota (‘Não vai dar tempo para tudo’, p. 71; ‘Hotéis decadentes que atendem no Inverno’, p. 72).

O movimento deste revelador livro, mostra-nos, com delicadeza, o que o leitor suspeita e teme ver registado: ‘[…] No final apenas tocamos as / margens do / que é importante […]’ (p. 71). Nesse museu é fundamental ver o quadro com mais atenção do que a nota – só assim se pode celebrar a possibilidade da vida.